Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e nao estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena
cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixoes que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre
correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim
depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro
sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à
beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- Uma
análise do poema -
O poema pode dividir-se em
três partes lógicas:
Na primeira, está expresso o
desejo epicurista de fruir o momento presente (1.ª e 2.ª
estrofes): mais do que da emoção de contemplar a
natureza (fitemos), a atitude amorosa
resulta da interpretação dela como símbolo de
fugacidade, interpretação que a razão comanda (aprendamos,
pensemos) na constante obsessão do nada
que, se por um lado determina no poeta um desejo de
fruir o presente e de aproveitar o fugaz momento, único
bem que nos é dado possuir, por outro lado reveste o
amor de uma gélida frieza, pelo calculado e pensado
sentido que retira toda a espontaneidade ao mais simples
gesto de ternura.
Na segunda parte, preconiza-se a
renúncia ao próprio gozo
desse fugaz momento que é a vida (3.ª à 6.ª estrofes).
Começa a ser nítido o afrouxar do impulso amoroso, a tal
ponto que, do gozo do momento presente, mais não fica
que uma contida emoção que aos poucos se anula para
terminar numa atitude de quase indiferença e de
irremediável incomunicabilidade (sentados ao pé um
do outro). E mais uma vez essa recusa é símbolo
mais amplo de um desencantado viver que nega qualquer
paixão mais forte e todo o esforço que se sabe impotente
para alterar a força do destino cruel, numa passividade
à margem da vida, quase fora dela.
Finalmente, na terceira parte, procede-se a uma
explicação dessa renúncia como única forma de anular o
sofrimento causado pela antevisão da morte (7.ª e 8.ª
estrofes). Com efeito, esse ideal de ataraxia que Reis
bebeu em Epicuro (e que não contém outro prazer além da
ausência de dor) é o remédio ilusório para a obsessão da
morte que, no final do poema, ele antevê e disfarça em
eufemísticas perífrases clássicas, mas que soa
ininterruptamente em Reis como um dobre a finados. E é
exactamente para superar a morte, ou superar-lhe pelo
menos o esperado sofrimento e a saudade que a acompanha,
que ele opta por essa vivência atrás definida, que nada
deixe que se lamente ou se deseje. Assim, se ele morrer
primeiro que a Lídia, esta não sofrerá com a sua
ausência, porque a ligação que os prendia não era muito
forte; pelo contrário, se for Lídia a morrer primeiro
que ele, também não haverá muito sofrimento, pois ele
apenas recordará algo de muito abstracto.
Mas dizemos
que essa abdicação de uma relação mais calorosa entre
ambos não passa de um remédio ilusório, porque essa
eventual superação da dor surge-nos, apesar de tudo,
tingida de um mal disfarçado sofrimento, que sentimos no
adjectivo sombrio, hipálage que, mais do
que o aspecto do barqueiro, nos sugere o estado de
espírito daquele que espera pela morte, o próprio poeta.
Várias são as inferências simbólicas clássicas deste
poema:
O rio, que sugere passagem, efemeridade e/ou morte e
aparece já na filosofia de Heráclito.
O "barqueiro sombrio", Caronte, que, na mitologia grega,
transportava as almas dos mortos que tinham sido
incinerados ou enterrados através dos rios infernais (o
Estige ou o Aqueronte), mediante um óbolo (pequena moeda
grega), que a família do defunto Ihe colocava na boca
para pagar a passagem.
O Fado e os deuses pagãos,
que controlam a seu bel-prazer a vida dos homens.
O enlaçar / desenlaçar das mãos, dicotomia que ora
aponta para a doutrina epicurista (o gozo momentâneo),
ora para os preceitos estóicos (abdicação de tudo o que
mais tarde nos pode causar dor e opção, sobretudo, pelos
valores espirituais).
As flores no colo e o seu
perfume, a sugerirem um bem efémero.
A sombra que,
eufemisticamente, representa a morte.
A frequência, por vezes,
aliterante dos sons /-v/ e /-s/, sugestivos de
arrastamento, conciliada com a assonância em /-ê/,
contribui para a acentuação do tom plangente do texto.
Por seu lado, o ritmo lento, pausado e plangente, de
acordo com o estado de espírito melancólico, frio e
calculista do sujeito poético, é sugerido pela
pontuação, pelos advérbios ou locuções adverbiais de
modo sossegadamente (duas vezes),
silenciosamente, sem desassossegos grandes,
tranquilamente e pelo uso de sons fechados
e nasais.
A frieza e a negatividade triste do poema é
denunciada pelo uso de palavras
ou segmentos lexicais com conotação negativa ou
pessimista: "A vida passa" (duas vezes), "nada deixa",
"nunca regressa", "vai", "passar" (=correr), "passámos",
"sempre correria", "sempre iria ter à...", "não" (cinco
vezes), "nada" (três vezes), "sem" (três vezes), "nunca"
(duas vezes), "nem" (seis vezes), "muito longe", "mais
longe que os deuses", "sempre" (duas vezes utilizada, a
sugerir a passagem inexorável do tempo), "pagãos
inocentes da decadência", "pagã triste".
De entre os múltiplos recursos estilísticos,
destacaremos:
A enumeração "Sem amores,
nem ódios, nem paixões (...) Nem invejas (...) Nem
cuidados...", para indicar os sentimentos que devemos
banir da nossa alma.
As duas gradações com
assíndeto - "trocar beijos e abraços e carícias", "...
te arda ou te fira ou te mova" -, uma, a sugerir aquilo
a que ambos se poderiam entregar, caso quisessem
usufruir em toda a plenitude do prazer físico; a outra,
a enumerar as consequências da renúncia consciente a uma
relação amorosa demasiado estreita.
A comparação "passamos
como o rio", a representar a precariedade da vida.
As expressões metafóricas
do "antes" (a vida) e do "depois" (a morte), para
realçar o papel da memória / lembrança, na terceira
parte do texto.
O eufemismo (atenuação do
grau de violência ou do carácter trágico duma palavra ou
expressão), que está presente nas perífrases "se for
sombra antes" e "e
se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio",
uma e outra a sugerieam a ideia da morte.
A apóstrofe "Lídia", a quem o discurso é dirigido
e que poderá representar cada um de nós, cujo modo de
ver e viver a vida deverá ser alterado.
Nota 1:
se tiver dúvidas e quiser rever os recursos
estilísticos, abra
esta página.
Ricardo Reis usa, neste
poema, o vocativo da segunda pessoa ("Vem sentar-te
comigo, Lídia, à beira do rio") associado ao modo
imperativo: vem, pega, deixa-as. O uso da primeira pessoa do plural
do presente do conjuntivo com sentido de imperativo
(optativo) - fitemos, prendamos,
enlacemos, pensemos,
desenlacemos, amemo-nos,
colhamos - relaciona-se com a existência de um
interlocutor (Lídia), a quem o discurso é dirigido e
cuja colaboração atenua um pouco o individualismo de
Reis que, assim, procura ultrapassar o negativismo de
Pessoa fechado em si mesmo.
Nas duas primeiras partes,
o presente do indicativo aparece, ao lado do gerúndio,
para traduzir a permanência da transitoriedade
existencial que é preciso encarar serenamente: "... a
vida passa e não estamos de mãos enlaçadas", "...a vida/
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,/ Vai para
um mar muito longe...", "... pensando que podíamos...",
"Ouvindo correr o rio e vendo-o".
Na terceira parte do
texto, a antevisão da morte impõe o surgimento de outros
tempos e modos verbais: o futuro do indicativo (lembrar-te-ás,
terei, ser-me-ás), o presente do
conjuntivo (arda, fira,
mova) e o futuro do conjuntivo - for,
levares.
Quer o vocativo, quer o uso da primeira pessoa, quer
ainda o emprego dos tempos e modos verbais indicados,
conferem um tom moralizante à composição poética.
(in
www.lithis, com alterações e adaptações)
Joaquim
Matias da Silva
Nota 2:
ver
aqui
análises ou leituras orientadas de outros poemas de
Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Talvez também tenha interesse em ver comentáros
de poemas e estudos integrais de todas as obras e
autores que fazem parte dos programas de
Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao
12.º anos de escolaridade.