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Fernando Pessoa

 

 

VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA, À BEIRA DO RIO

 

(11-7-1914)

 

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e nao estamos de mãos enlaçadas.
               (Enlacemos as mãos.)

 

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
              Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
               E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixoes que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
               E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
               Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
               Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
               Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
              Pagã triste e com flores no regaço.


 

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

 

 

 

 

- Uma análise do poema -

 

O poema pode dividir-se em três partes lógicas:

 

Na primeira, está expresso o desejo epicurista de fruir o momento presente (1.ª e 2.ª estrofes): mais do que da emoção de contemplar a natureza (fitemos), a atitude amorosa resulta da interpretação dela como símbolo de fugacidade, interpretação que a razão comanda (aprendamos, pensemos) na constante obsessão do nada que, se por um lado determina no poeta um desejo de fruir o presente e de aproveitar o fugaz momento, único bem que nos é dado possuir, por outro lado reveste o amor de uma gélida frieza, pelo calculado e pensado sentido que retira toda a espontaneidade ao mais simples gesto de ternura.

 

Na segunda parte, preconiza-se a renúncia ao próprio gozo desse fugaz momento que é a vida (3.ª à 6.ª estrofes). Começa a ser nítido o afrouxar do impulso amoroso, a tal ponto que, do gozo do momento presente, mais não fica que uma contida emoção que aos poucos se anula para terminar numa atitude de quase indiferença e de irremediável incomunicabilidade (sentados ao pé um do outro). E mais uma vez essa recusa é símbolo mais amplo de um desencantado viver que nega qualquer paixão mais forte e todo o esforço que se sabe impotente para alterar a força do destino cruel, numa passividade à margem da vida, quase fora dela.

 

Finalmente, na terceira parte, procede-se a uma explicação dessa renúncia como única forma de anular o sofrimento causado pela antevisão da morte (7.ª e 8.ª estrofes). Com efeito, esse ideal de ataraxia que Reis bebeu em Epicuro (e que não contém outro prazer além da ausência de dor) é o remédio ilusório para a obsessão da morte que, no final do poema, ele antevê e disfarça em eufemísticas perífrases clássicas, mas que soa ininterruptamente em Reis como um dobre a finados. E é exactamente para superar a morte, ou superar-lhe pelo menos o esperado sofrimento e a saudade que a acompanha, que ele opta por essa vivência atrás definida, que nada deixe que se lamente ou se deseje. Assim, se ele morrer primeiro que a Lídia, esta não sofrerá com a sua ausência, porque a ligação que os prendia não era muito forte; pelo contrário, se for Lídia a morrer primeiro que ele, também não haverá muito sofrimento, pois ele apenas recordará algo de muito abstracto.

Mas dizemos que essa abdicação de uma relação mais calorosa entre ambos não passa de um remédio ilusório, porque essa eventual superação da dor surge-nos, apesar de tudo, tingida de um mal disfarçado sofrimento, que sentimos no adjectivo sombrio, hipálage que, mais do que o aspecto do barqueiro, nos sugere o estado de espírito daquele que espera pela morte, o próprio poeta.

 

Várias são as inferências simbólicas clássicas deste poema:

 

O rio, que sugere passagem, efemeridade e/ou morte e aparece já na filosofia de Heráclito.

 

O "barqueiro sombrio", Caronte, que, na mitologia grega, transportava as almas dos mortos que tinham sido incinerados ou enterrados através dos rios infernais (o Estige ou o Aqueronte), mediante um óbolo (pequena moeda grega), que a família do defunto Ihe colocava na boca para pagar a passagem.

 

O Fado e os deuses pagãos, que controlam a seu bel-prazer a vida dos homens.
 

O enlaçar / desenlaçar das mãos, dicotomia que ora aponta para a doutrina epicurista (o gozo momentâneo), ora para os preceitos estóicos (abdicação de tudo o que mais tarde nos pode causar dor e opção, sobretudo, pelos valores espirituais).

 

As flores no colo e o seu perfume, a sugerirem um bem efémero.

 

A sombra que, eufemisticamente, representa a morte.

 

A frequência, por vezes, aliterante dos sons /-v/ e /-s/, sugestivos de arrastamento, conciliada com a assonância em /-ê/, contribui para a acentuação do tom plangente do texto. Por seu lado, o ritmo lento, pausado e plangente, de acordo com o estado de espírito melancólico, frio e calculista do sujeito poético, é sugerido pela pontuação, pelos advérbios ou locuções adverbiais de modo sossegadamente (duas vezes), silenciosamente, sem desassossegos grandes, tranquilamente e pelo uso de sons fechados e nasais.

 

A frieza e a negatividade  triste do poema é denunciada pelo uso de palavras  ou segmentos lexicais com conotação negativa ou pessimista: "A vida passa" (duas vezes), "nada deixa", "nunca regressa", "vai", "passar" (=correr), "passámos",  "sempre correria", "sempre iria ter à...", "não" (cinco vezes), "nada" (três vezes), "sem" (três vezes), "nunca" (duas vezes), "nem" (seis vezes), "muito longe", "mais longe que os deuses", "sempre" (duas vezes utilizada, a sugerir a passagem inexorável do tempo),  "pagãos inocentes da decadência", "pagã triste".

 

De entre os múltiplos recursos estilísticos, destacaremos:

 

A enumeração "Sem amores, nem ódios, nem paixões (...) Nem invejas (...) Nem cuidados...", para indicar os sentimentos que devemos banir da nossa alma.

 

As duas gradações com assíndeto - "trocar beijos e abraços e carícias", "... te arda ou te fira ou te mova" -, uma, a sugerir aquilo a que ambos  se poderiam entregar, caso quisessem usufruir em toda a plenitude do prazer físico; a outra, a enumerar as consequências da renúncia consciente a uma relação amorosa demasiado estreita.

 

A comparação "passamos como o rio", a representar a precariedade da vida.

 

As expressões metafóricas do "antes" (a vida) e do "depois" (a morte), para realçar o papel da memória / lembrança, na terceira parte do texto.

 

O eufemismo (atenuação do grau de violência ou do carácter trágico duma palavra ou expressão), que está presente nas perífrases "se for sombra antes"  e "e se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio", uma e outra a sugerieam a ideia da morte.

 

A  apóstrofe "Lídia", a quem o discurso é dirigido e que poderá representar cada um de nós, cujo modo de ver e viver a vida deverá ser alterado.

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

 

 

Ricardo Reis usa, neste poema, o vocativo da segunda pessoa ("Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio") associado ao modo imperativo: vem, pega, deixa-as. O uso da primeira pessoa do plural do presente do conjuntivo com sentido de imperativo (optativo) - fitemos, prendamos, enlacemos, pensemos, desenlacemos, amemo-nos, colhamos - relaciona-se com a existência de um interlocutor (Lídia), a quem o discurso é dirigido e cuja colaboração atenua um pouco o individualismo de Reis que, assim, procura ultrapassar o negativismo de Pessoa fechado em si mesmo.

Nas duas primeiras partes, o presente do indicativo aparece, ao lado do gerúndio, para traduzir a permanência da transitoriedade existencial que é preciso encarar serenamente: "... a vida passa e não estamos de mãos enlaçadas", "...a vida/ Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,/ Vai para um mar muito longe...", "... pensando que podíamos...", "Ouvindo correr o rio e vendo-o".

Na terceira parte do texto, a antevisão da morte impõe o surgimento de outros tempos e modos verbais: o futuro do indicativo (lembrar-te-ás, terei, ser-me-ás), o presente do conjuntivo  (arda, fira, mova) e o futuro do conjuntivo - for, levares.

Quer o vocativo, quer o uso da primeira pessoa, quer ainda o emprego dos tempos e modos verbais indicados, conferem um tom moralizante à composição poética.

 

(in www.lithis, com alterações e adaptações)

 

Joaquim Matias da Silva

 

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

 

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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