Camilo Castelo Branco
Fernando Pessoa
José Saramago
Sttau Monteiro
Outros
Outros Autores
 

OS MAIAS - Personagens

 

- TOMÁS DE ALENCAR -

 

 

Nesse momento a porta envidraçada abriu-se de golpe, Ega exclamou: «Saúde ao poeta»!

E apareceu um indivíduo muito alto, todo abotoado numa sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, românticos bigodes grisalhos: já todo calvo na frente, os anéis fofos de uma grenha muito seca caíam-lhe inspiradamente sobre a gola: e em toda a sua pessoa havia alguma coisa de antiquado, de artificial e de lúgubre.

Estendeu silenciosamente dois dedos ao Dâmaso, e abrindo os braços lentos para Craft, disse numa voz arrastada, cavernosa, ateatrada:

- Então és tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? Dá-me cá esses ossos honrados, honrado inglês!

Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os:

- Não sei se são relações. Carlos da Maia... Tomás de Alencar, o nosso poeta...

Era ele! o ilustre cantor das "Vozes de Aurora", o estilista de "Elvira", o dramaturgo do "Segredo do Comendador". Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a mão em silêncio - e sensibilizado, mais cavernoso:

- Vossa Excelência, já que as etiquetas sociais querem que eu lhe dê excelência, mal sabe a quem apertou agora a mão...

Carlos, surpreendido, murmurou:

- Eu conheço muito de nome...

E o outro com o olho cavo, o lábio trémulo:

- Ao camarada, ao inseparável, ao íntimo de Pedro da Maia, do meu pobre, do meu valente Pedro!

- Então, que diabo, abracem-se! -gritou Ega. - Abracem-se, com um berro, segundo as regras...

Alencar já tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou, retomando-lhe as mãos, sacudindo-lhas, com uma ternura ruidosa:

- E deixemo-nos já de excelências! que eu vi-te nascer, meu rapaz! trouxe-te muito ao colo! sujaste-me muita calça! Cos diabos, dá cá outro abraço!

Craft olhava estas coisas veementes, impassível; Dâmaso parecia impressionado; Ega apresentou um copo de vermute ao poeta:

- Que grande cena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da emoção...

Alencar esgotou-o de um trago: e declarou aos amigos que não era a primeira vez que via Carlos. Já o admirara no seu faetonte, muitas vezes, e aos eus belos cavalos ingleses. Mas não se quisera dar a conhecer. Ele nunca se atirava aos braços de ninguém, a não ser das mulheres... Foi encher outro cálice de vermute, e com ele na mão, plantado diante de Carlos, começou, num tom patético:

- A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no Rodrigues, esquadrinhando alguma dessa velha literatura, hoje tão desprezada... (Cap. v, pp.159-160)

 

O autor das "Vozes da Aurora" simboliza o Ultra-romantismo hipersentimental, soturno, piegas, falho de originalidade. Já velha, artificial e lúgubre, a sua figura aponta para uma decadência (da pessoa e da escola que ela representa).

Nas lutas travadas com os defensores do realismo (a "Ideia Nova", como ele dizia), recorre à calúnia e, confundindo arte com moral, cai no extremo da incoerência ao fazer-se paladino dos bons costumes (ele que "propusera comércios lúbricos a todas as damas da capital" - ver p. 163).

 

Obs: as páginas indicadas referem-se à obra de Eça de Queirós, Os Maias (Episódios da Vida Romântica), Edição Livros do Brasil, de acordo com a primeira edição (1888). Lisboa

 

Joaquim Matias da Silva

 

Voltar

Início da página

 

© Joaquim Matias 2009

 

 

 

 Páginas visitadas