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OS LUSÍADAS

 

- Reflexões/comentários do Poeta -

 

Cantos

Reflexões e comentários do Poeta

I

 

Chegada dos portugueses a Mombaça – est. 103-106

 

Os portugueses chegam à cidade de Mombaça. Vasco da Gama está contente, porque espera encontrar um povo baptizado, como lhe contara o falso piloto. Na realidade, porém, tratava-se de uma traição arquitectada por Baco. (est. 103-104).

Descoberta a cilada, e a propósito da mesma, o Poeta reflecte acerca dos perigos que em toda a parte espreitam o homem. Na verdade, quando o homem pensa que está a enveredar pelo caminho certo, eis que surgem inúmeros perigos: tormentas e mortes no mar; guerra, enganos e contrariedades na terra. Daí que Poeta termine o canto I com uma interrogação retórica: onde pode o homem, um ser tão mesquinho, ter a sua vida segura? Até parece que o Céu tão sereno resolveu indignar-se e rebelar-se contra “um bicho da terra tão pequeno”! (est. 104 e 105)

 

IV

 

O Velho do Restelo – est. 94-104

 

Na praia do Restelo, de entre a multidão que assiste à partida das naus, surge um velho de “aspeito venerando” que, encarnando a voz do bom senso, com um “saber só de experiências feito”, censura os mareantes pela sua ousadia, pela sua vaidade e vã glória de mandar, fazendo-lhes ver, em prolepse, com palavras profeticamente pessimistas, as terríveis consequências do seu acto tresloucado. É o célebre episódio do Velho do Restelo, com que termina o canto IV. As razões contrárias aos descobrimentos, invocadas pelo velho, representam a opinião daqueles que se opunham à expansão marítima (a nobreza guerreira que queria ir para o Norte de África, com o pretexto de combaterem os seguidores de Maomé), vaticinando para o país desequilíbrios de ordem política, social, moral e militar.

Entretanto, este episódio tem também um significado universal e humano, quando o Velho do Restelo define a natureza humana como eminentemente insatisfeita, sendo que essa insatisfação se é fonte de progresso efectivo, também não deixa de gerar a infelicidade, porque desperta no ser humano a cobiça, a ganância, a ambição e, consequentemente, a discórdia, a guerra, a morte, próprias da Idade do Ferro. Por isso é que o Velho do Restelo evoca com saudade os tempos felizes da Idade do Ouro, quando o homem foi verdadeiramente feliz.

Este episódio poderá, ainda, representar a voz do bom senso, que adverte para o perigo de aventuras. Mas ao fazê-lo, não estará o Velho do Restelo, indirectamente, a realçar a coragem dos portugueses que não se deixam demover e partem, movidos por um impulso interior de grandeza e heroicidade?

 

V

 

As artes e as letras – est. 92-100

 

O Poeta lamenta o facto de os portugueses não valorizarem as artes e as letras, contrariamente às grandes figuras da História da Humanidade que recompensavam aqueles que escreviam sobre os seus feitos ou os feitos da sua pátria. Inclusive, algumas dessas figuras até eram artistas, apreciando a arte, e assim é que devia ser, “Porque quem não sabe arte, não na estima” (est. 97, v. 8)

 

VI

 

O verdadeiro valor da Fama e da Honra – est. 95-99

 

Reflexões do Poeta sobre o que é verdadeiramente a Honra e a Fama, que só se conseguem com sacrifício, com um desprendimento total, a ponto de os verdadeiros heróis porem a própria vida em risco, em vez de viverem na ociosidade ou à sombra da glória e das riquezas alcançadas pelos seus antepassados.

 

VII

 

Invocação e promessas do Poeta às Ninfas – est. 78-87

 

O Poeta queixa-se dos seus infortúnios e invoca novamente as Ninfas, pedindo-lhes inspiração para poder continuar a cantar os feitos dos portugueses. Em contrapartida, promete-lhes enaltecer apenas aqueles que o mereçam ser, sem se deixar cair no pecado da lisonja. Quanto aos interesseiros, aos ambiciosos, aos que se aproveitam dos seus cargos para fazerem vir à superfície os seus próprios vícios, aos que mudam facilmente de opinião, em consonância com os seus interesses mesquinhos, aos exploradores do povo, esses não serão objecto do seu canto.

 

VIII

 

O poder do dinheiro – est. 96-99.

 

O Poeta reflecte agora sobre o poder “metal luzente e louro”, que a todos afecta e que faz com que as pessoas se tornem traidoras, daí advindo problemas aos níveis militar, político, económico, social, judicial e, até, religioso.

 

IX

 

Chegada dos portugueses e recepção na Ínsula divina ou Ilha dos Amores – est. 51-64

 

 De regresso a Portugal, os navegantes vão ser homenageados pelos deuses. Com efeito, Vénus prepara-lhes, com a ajuda das ninfas e de seu filho Cupido, uma recompensa pelos perigos e tormentas que enfrentaram e de que saíram vitoriosos. Fá-los aportar a uma ilha paradisíaca, povoada de ninfas amorosas que lhes deleitam os sentidos. O carácter paradisíaco da ilha resulta da utilização constante da adjectivação de conotação positiva e da referência à flora variada e exótica, com particular incidência para as árvores de fruta, e da referência às fontes de águas puras e cristalinas, umas e outras símbolo de fertilidade e de abundância. Os dados sensoriais, nomeadamente as sensações visuais, olfactivas, tácteis e gustativas, são também uma constante. Entretanto, as divindades que povoam a ilha fingem, num autêntico jogo de sedução, fingem assustar-se com a presença dos marinheiros, mas de imediato se entregam aos prazeres do amor: “... pela floresta se deixavam/ Andar as belas Deusas, como incautas./ Algῦas, doces cítaras tocavam,/ Algῦas, harpas e sonoras frautas;/ Outras, cos arcos de ouro, se fingiam/ Seguir os animais que não seguiam" (est. 64). Por isso, não é de estranhar a linguagem utilizada, com conotações marcadamente eróticas ou sensuais, bem presentes nas formas das plantas e dos frutos, a sugerirem o aparelho reprodutor feminino, e nas cores (amarelo, púrpura, rubi e roxo), como o comprovam os seguintes exemplos: “Encosta-se no chão, que está caindo,/ A cidreira cos pesos amarelos;/ Os fermosos limões ali, cheirando,/ Estão virgíneas tetas imitando” (est.56, vv.5-8); “Está apontando o agudo cipariso/ Pera onde é posto o etéreo Paraíso.” (est.57, vv.7 e 8); e “Abre a romã, mostrando a rubicunda/ Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes;/ Entre os braços do ulmeiro está jocunda/ Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;/ E vós, se na vossa árvore fecunda,/ Pêras piramidais, viver quiserdes,/ Entregai-vos ao dano que cos bicos/ Em vós fazem os pássaros inicos." (est. 59)

 

Simbologia da Ilha dos Amores – est. 88-95

 

Esta ilha não existe na realidade, mas na imaginação, no sonho que é o que dá sentido à vida e que permite atingir a plenitude da Beleza, do Amor, da Realização. Então, a Ilha dos Amores ou “Ilha namorada” ganha sobretudo, um valor mítico e simbólico. É que a grandeza dos Descobrimentos também se mede pela grandeza do prémio, e esse foi o da imortalidade, simbolicamente representada na união homens-deusas.

No banquete com que homenageiam os nautas, uma ninfa profetiza futuras vitórias dos portugueses. Tétis, a ninfa com cujo amor Vasco da Gama fora mimado e premiado, condu-lo agora ao cume de um monte para lhe mostrar a "Máquina do Mundo" e lhe dar a noção do que será o Império Português. É o auge da glorificação – Vasco da Gama vê o que só aos deuses é dado ver: a glorificação simbólica do conhecimento, do sabor proporcionado pelo sonho da descoberta. E deste modo, o “bicho da terra tão pequeno" venceu as suas próprias limitações e foi além "do que prometia a forço humana".

A nível da estrutura do poema, significativamente, os três planos sobrepõem-se: os viajantes confraternizam com as entidades mitológicas e ouvem a História futura de Portugal – plano da viagem, plano mitológico e plano história.

O poeta não perde a oportunidade, no final do Canto, parar traçar o perfil dos que podem ser "nesta ilha de Vénus recebidos" (est. 95, v. 8). E quem serão eles? Os que fizerem obras valorosas e seguirem pelo caminho da virtude, ao princípio difícil e sinuoso, é certo, mas, no fim, “doce, alegre e deleitoso” (est. 90, vv. 5-8); os que cometerem feitos tão grandes que, a exemplo dos deuses, que já foram humanos, se tornarão imortais (est. 91); os que não se ficarem escravos do ócio (est. 92); os que não se deixarem levar pela cobiça, pela ambição, pela tirania e pelo pretensiosismo (est. 93), os que forem justos, não explorarem os pequenos e lutarem pela fé de Cristo (est. 94); os que derem bons conselhos ao Rei, forem leais, a ponto de lutarem por ele, e sonhem, mas sempre de forma realista. (est. 95)

 

X

 

Lamentos e exortação do Poeta

 

Os últimos versos de Os Lusíadas revelam sentimentos contraditórios do Poeta. Efectivamente, à euforia do início da epopeia, vemos agora um ser que, no final da obra, se lamenta, com sinais de disforia no discurso e razões mais do que suficientes para formular novos pedidos.

Na verdade, os nautas lusos regressam à terra natal e vêm engrandecidos pelos seus feitos fabulosos. Honraram o seu povo e deram novos títulos ao rei D. Manuel que, após os Descobrimentos, tomou os títulos de Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. (est. 144) No entanto, o Poeta lamuria-se por estar a cantar a gente pouco sensível a essa grandiosidade. Por isso, afirma que a sua voz está “destemperada” e “enrouquecida”, por “Cantar a gente surda e endurecida”, e vê a pátria acometida de uma “austera, apagada e vil tristeza” (est. 145). A sua perplexidade é tanta face a essa constatação e à falta de orgulho dos Portugueses, ao não reconhecerem as grandiosas obras dos seus antepassados, que se vê na obrigação de voltar a invocar D. Sebastião, legitimado como rei de Portugal pelo poder divino (est. 145). Ora, essa invocação surge como uma espécie de continuação da Dedicatória e estaríamos, então, perante um discurso circular, um retorno aos inícios, como quem diz que é necessário recomeçar tudo de novo para que a pátria recupere a sua grandiosidade. Não nos esqueçamos que quando Camões escreveu e dedicou Os Lusíadas a D Sebastião já a pátria vivia uma profunda crise de identidade que levaria, inexoravelmente, à perda da independência do país, em 1580, curiosamente também o ano da morte deste insigne escritor. Ao longo dessa invocação, vários são os aspectos focados aos quais o rei terá de dar um particular valor:

a) O Rei dispõe de súbditos excelentes (est. 146);

       b) O Rei tem ao seu serviço uma plêiade de heróis, capazes de tudo, inclusive, dar peito às balas e enfrentar as maiores adversidades na terra e no mar, caso sejam devidamente valorizados (est. 147);

       c) Esses heróis, de forma obediente e heróica, procurarão tornar o Rei um vencedor e não um vencido (est.148);

       d) O rei terá que dar ouvidos às pessoas que têm mais experiência de vida, porque esses sabem como, quando e onde as “cousas” acontecem – crítica implícita ao Rei por ele ter escolhido como conselheiros gente jovem e demasiado aventureira, que defendia, por exemplo, a incursão dos Portugueses pelo Norte África, daí resultando o desastre de Alcácer Quibir, em 4 de Agosto de 1587? (est.149);

       e) Todos os que trabalham devem ser louvados, incluindo-se nesse número os religiosos, cuja missão é rezar pelo Rei, com jejuns e disciplina, e lutar contra os vícios mais comuns, sem ambicionar, em troca, glória vã ou dinheiro (est. 150);

        f) Os guerreiros que, com o seu sangue e heroísmo, dilataram a fé e o império, devem ser estimados, até porque tiveram de vencer dois inimigos: os vivos e os maiores obstáculos (est. 151);

       g) Os Portugueses estão mais predestinados para mandar do que para serem mandados, ao contrário do que pensam ou dizem outros povos, mas isso implica que o Rei ouça o conselho dos que são mais experimentados, dos que viveram de perto os acontecimentos. (est.152);

       h) Com sonhos e teorias não se ganham batalhas. Aníbal (general cartaginês), por exemplo, ficou muito admirado ao ver, em Éfeso, o filósofo grego Formião querer dar-lhe lições de táctica militar, quando, apesar de toda a sua sabedoria, não percebia nada do assunto, pois a disciplina militar não se adquire em teoria mas pela prática. (est. 153)

          Nas últimas três estâncias deste canto, o Poeta interroga-se sobre o valor dos seus conselhos, ele que é “humilde, baxo e rudo”. Todavia, é dos pequenos que às vezes sai o verdadeiro louvor e a ele, Poeta, não lhe faltam estudos nem experiência (est. 155). Efectivamente, ele lutou e cantou pela causa régia. Então, só falta que o Monarca aceite o seu merecimento e que faça com que ele continue a cantar os feitos que Deus tem reservados para ele (est.156). Se assim fizer, D. Sebastião terá um futuro grandioso, ultrapassando as façanhas de Medusa e vencendo em terras africanas, sendo que ele, como poeta, poderá cantar os actos heróicos do monarca lusitano, de tal forma que Alexandre se reverá nele, sem ficar com inveja das proezas de Aquiles.(est.156)

 

O Professor,

Joaquim Matias da Silva

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