A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;
Enfim, tudo o que a rara Natureza
Com tanta variedade nos oferece
Me está, se não te vejo, magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza...
Notas:
V. 3 - manso : suave; V. 4
- desterra:
afasta; V. 5 - estranha: diferente
(possivelmente a serra de Sintra); V. 7- derradeiros: últimos;
V. 9 - rara: singular, invulgar; V. 12 -
enoja: entristece; V. 14 - mores:
maiores (majores
> maores > moores > mores, respetivamente
síncope, assimilação regressiva completa e contração por
crase)
1. Este é um soneto inspirado na saudade, «porventura o
mais doce, expressivo e delicado termo da nossa língua»
— no dizer de Almeida Garrett. As belezas daquela
«estranha terra» extasiam o sujeito poético. No entanto,
sem a presença da amada, ele sente a maior «tristeza» no
meio das maiores «alegrias». Com efeito, estas últimas
apenas servirão para o magoar, já que a (re)visão da
Natureza fascinante apenas despertará nele recordações
da amada, sendo que, na sua ausência, tudo o que é belo
na Natureza o «enoja» e o «aborrece».
2. Há duas partes lógicas constitutivas da composição.
Na primeira, correspondente às quadras, faz-se uma
descrição paisagística, em frases de tipo nominal e de
forma objetiva, fluente e espontânea. Na segunda,
formada pelos tercetos, são exteriorizados estados de
alma subjetivos (magoar
/
enojar
/
aborrecer
/
passar tristezas).
3. Realce para os grupos preposicionais do último verso
do segundo terceto («nas
mores alegrias, mor tristeza...»),
em que o primeiro está ligado, quanto ao sentido, às
duas quadras e o segundo («mor tristeza») ao primeiro
terceto.
4. Visão estática da Natureza (exceção feita ao «manso
caminhar» dos ribeiros, ao «esconder do sol», ao
«recolher dos gados» e à «branda guerra».
5. A visão intelectualizada da mesma Natureza, conforme
o modelo renascentista, em que é ressaltada, em primeiro
lugar, a caraterística do elemento enunciado, através de
um nome ou infinitivo substantivado (a
fermosura
/
a sombra
/
o caminhar
/
o som
/
o esconder
/
o recolher
/
a guerra),
seguidos da preposição
de
e quase sempre acompanhados do respetivo modificador.
6. O pronome indefinido "tudo"
no primeiro verso do primeiro terceto com que, após a
visão analítica da paisagem, se inicia a síntese: a
raridade e a variedade da Natureza são os seus dois
atributos principais da Natureza que o magoam, caso não
veja a amada.
7. De frisar, ainda, o processo de intensificação
semântica e, com ela, o prolongamento da dor e seu
aprofundamento evidenciados no último terceto com o
recurso à anáfora («sem ti... sem ti»); a antítese
(«alegrias... tristezas»); o advérbio de modo
(«perpetuamente»); e da voz perifrástica («estou
passando»), a sugerirem o estado permanente de apatia e
de tristeza do eu lírico perante a ausência da mulher
amada.
8. Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / DEC, com rimas
interpolada e emparelhada, nas quadras; interpolada e
cruzada, nos tercetos; consoante e feminina ou grave, em
todo o poema, talvez a sugerir a gravidade da situação
para o eu da enunciação, confrontado que está com a
ausência da mulher - género feminino - que tanto ama!...
BRAGANÇA, António
(1981). Textos e
comentários, c/
adaptações.