Introdução
Tema
Análise formal
Caraterização do sujeito poético
Expressividade da linguagem
Nível fónico
Nível morfossintático
Estrutura interna
Nível semântico
Nível fónico
Nível semântico
Conclusão
Evolução literária do autor |
O
soneto apresentado para objeto de comentário é
da autoria de Antero de Quental, poeta da
segunda metade do século XIX, que teve uma ação
preponderante em todos os movimentos culturais
do País, nomeadamente na chamada
Questão Coimbrã
(1865) e nas célebres
Conferências do Casino
(1871). No primeiro caso, bateu-se pela
renovação contra o imobilismo de Castilho e da
geração que este representava, pela inovação
contra a imitação sem originalidade, pela
liberdade e isenção contra o compadrio e a
dependência do poder estabelecido; no segundo
acontecimento, lançou, com outras eminentes
personalidades, os fundamentos programáticos da
acção renovadora. É considerado unanimemente a
"alma" da
Geração de 70, constituída por um
vasto leque de exímias personalidades, de nível
sobretudo literário, empenhadas na transformação
política, social e cultural de Portugal,
apontando os países avançados da Europa como
modelo a seguir.
Educado
tradicionalmente, místico por natureza, chegou a
Coimbra e sofreu os efeitos de um meio
totalmente diverso do familiar. Sentindo-se
atraído por um mundo ideal, utópico, deixa-se
influenciar pelo socialismo de Proudhon e pelo
idealismo de Hegel. A mediocridade da realidade
contrasta com o mundo que traz gravado no seu
coração e, por isso, sente-se sempre um
inadaptado, vivendo um permanente conflito,
oriundo dessa oposição.
A oposição entre o
sonho e a realidade é precisamente o tema do
soneto "Acordando", composto, como é de lei, por
duas quadras e dois tercetos, com o esquema
rimático abba / abba / ccd / eed, de versos
decassilábicos interpolados (a a, d d) e
emparelhados (bb, cc, ee). O sonho está expresso
sobretudo nas quadras - primeiro momento -,
através de vocabulário de carácter positivo: "o
sonhar quebranta...", "a cotovia", "Céu",
"canta", "luz", "alvorada", "estrela", "dia",
"enlevo", "alegria" e "amor". Sente-se a
atração, a magia que este conjunto semântico de
felicidade exerce sobre o sujeito poético. Com
efeito, é através do sonho que o sujeito lírico
se eleva para o "Céu", para o ideal, aquele
mundo perfeito que Platão soube expor em textos
ainda sedutores e identificados com o desejo do
"Bem Absoluto", aspiração que mora na alma de
cada ser humano. Comparando-se a uma cotovia, é
embalado pelo canto desta ave: a repetição do
verbo "subir" e do verbo "cantar" acentua essa
evasão para o paraíso do sonho. De realçar o
gerúndio "cantando", a sugerir a permanência do
canto/sonho, e ainda a expressividade da
substância fónica dos versos 3 e 4 realizada,
quer pelas leves aliterações /-c/, /-t/ e /s/,
quer pelo tom nasal, quer ainda pela repetição
da vogal /-i/ (assonância). Nesta quadra,
encontra-se já claramente definida a oposição
entre o sonho e a realidade. Há dois campos
semânticos opostos:
sofrer,
agonia
versus
cotovia,
Céu. A rima
explicita também esta oposição:
"...quebranta/...canta", "...agonia/cotovia...".
O entusiasmo e a magia do canto são muito mais
evidentes na segunda quadra. Na verdade, o verbo
cantar,
repetido anaforicamente, dá o tom a todo um
discurso embalador, feito sobretudo da
enumeração assindética de muitos elementos,
todos eles apelando para um mundo pleno de
alegria. A rima entre
santa
e
alevanta,
dia
e
alegria, o vocabulário positivo,
luminoso, a pontuação suspensiva, a construção
paralelística (vv. 5-6, 7-8) são aspectos bem
sugestivos de que no mundo do sonho paira um mar
de felicidade.
Todavia, nos
versos 1 e 2, há um indício claro de que o sonho
é passageiro e a realidade persiste: "... às
vezes, se o sonhar quebranta / Este meu vão
sofrer, esta agonia". É essa realidade que se
instala no primeiro terceto e no primeiro verso
do segundo terceto - segundo momento do texto.
A adversativa
"Mas" impõe uma oposição. Por isso, o eu lírico
regressa à realidade, utilizando um vocabulário
de índole negativa: "vento húmido e frio",
"um calafrio", "A noite é
negra e muda", "a dor",
recuperando-se o vocabulário dos versos 1 e 2 da
primeira quadra, numa circularidade simbólica, a
indiciar o eterno retorno à realidade cruel.
Personificando o
vento, caracterizado pelo dupla adjectivação "húmido"
e "frio", o sujeito poético faz
dele o elemento destruidor do mundo onírico - "Sopra
sobre o meu sonho" -, que acorda, em
calafrio, o Poeta. Repare-se no travessão como
divisória, afastando o sonho e impondo a
crueldade da realidade: "A noite é negra e
muda". As palavras de sentido negativo,
a aliteração do som nasal [n] e [m], a dupla
adjectivação, tudo se agrupa num campo semântico
para criar a relação antitética entre dia
e noite, sonho e realidade.
Em consequência, nova realidade antitética se
gera: a
alegria e a
dor. Já não
há canto, já não há aves, já não há luz, já não
há amor; só a dor aparece vigilante. O
encavalgamento estrófico é elucidativo do estado
de tristeza que avassala a realidade, como que
traduzindo a sua convulsão interior. O verbo "velar",
do campo semântico da vigilância (que não pode
permitir evasões), impõe a dor, personificada e
feita companheira inseparável do sujeito
poético. Compreende-se a expressividade do
título "Acordando",
um gerúndio, a sugerir a dificuldade do abandono
do sonho e da entrada na realidade.
Em sinal de
honestidade, o sujeito poético não deixa de, num
terceiro momento, se dirigir apostroficamente ao
seu destinatário - "anjo adorado"-,
lembrando-lhe que os seus cantos (os seus
poemas) são "sonho só" e nada
mais. Ele sonha o "seu amor". Nova circularidade
a ressaltar que a passagem do mundo real para o
mundo irreal se faz "às vezes",
mas a realidade acaba sempre por se impor.
Estamos perante um
poema belo, simples e dramático, com um
vocabulário simples, porém expressivo, remetendo
para uma realidade dramática: o "eu" não
consegue libertar-se do mundo real, que o
oprime.
Ora,
quem não vê aqui a
trajetória da evolução literária de Antero?
Poeta combativo, luminoso, optimista, paladino
de um mundo orientado pela Razão, Justiça,
Verdade, Amor, Liberdade, procurando "O
palácio encantado da Ventura",
tentando realizar o que afirmara em 'Odes
Modernas': "A Poesia moderna é a
voz da Revolução"; poeta abatido,
desalentado, destruído, pessimista, apelando ao
Nada, ao Nirvana, ao Não-Ser, onde possa
descansar do seu inútil combate. Ele é
verdadeiramente o cavaleiro andante que, no
"Palácio encantado da Ventura", encontrou
"silêncio e nada mais". Ficou, todavia, a sua
obra como manifestação imorredoura do drama que
acompanhará sempre a humanidade dividida entre o
sonho e a realidade.
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