Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Antero de Quental,
Sonetos
Comentário ao poema
"Sonho que sou": eis as primeiras palavras que lemos.
Chama-nos a atenção de imediato o verbo "sonhar". O
texto parte de uma realidade onírica, ideal. Não é
verdade que o sonho é uma "constante da vida", "Que
sempre que o homem sonha/O mundo pula e
avança"? Não é
verdade que muitas vezes nos entregamos ao sonho? O
sujeito poético (= eu) sonha. O quê? "Sonho que
sou um cavaleiro andante". A sua convicção é
reforçada pela repetição do
fonema sibilante /-s/ que confere força à afirmação,
algo que não aconteceria se esse verso fosse substituído
por "Sonho-me um cavaleiro andante"
ou "Julgo que sou um cavaleiro andante".
Ora, o que é um cavaleiro andante? Antes de mais, é sinónimo de sonho,
pois "andante" remete exatamente para um
espaço a percorrer,num determinado momento temporal.
Que espaço?
"Por desertos, por sóis, por noite escura".
Repare-se na repetição do fonema
bilabial momentâneo [p] - aliteração em /-p/ -, que, pela implosão do ar e
ruído que provoca, sugere de imediato o som do trotar do
cavalo: p p p. Se o texto fosse simbolista, poderíamos,
inclusive, tirar partido da configuração desta consoante para
a sugestão da configuração física da pata do cavalo.
O espaço e a dimensão temporal são, pois, constituídos
por três realidades:
desertos,
sóis,
noite
escura.
Cavalgar por
desertos, é difícil.
Mas cavalgar por desertos e ainda por sóis (o sol escaldante do deserto!)
ainda é mais difícil. Porém, não é a vida
também uma aventura "escaldante"? Entretanto, cavalgar por
noite escura não será sinónimo de impossibilidade? O
adjetivo "escura" está intrinsecamente ligado à noite.
Então, por que razão o sujeito poético fez questão de
qualificá-la de "escura"? É que há noites com tanto luar
que permitem ver. O que parece evidente é a gradação
crescente das dificuldades que o cavaleiro terá de
vencer. Que força o impele? Certamente que é o amor a um objetivo, a uma meta,
até por que ele se auto-intitula "Paladino do amor" e,
como sabemos, o amor é
por vezes mais forte do que a morte, porque quando o amor é mesmo amor, tudo pode vencer.
Por isso, guiado pela força do amor, o cavaleiro busca "... anelante/ O
palácio encantado da Ventura". É essa a meta, o objetivo:
alcançar a Ventura, a Felicidade, metaforicamente
apresentada como uma rainha a viver num palácio
encantado. Que a procura é intensa, com precipícios a
terem que ser ultrapassados, mostra-o não só o
adjetivo "anelante" (ele terá de se esquivar) mas também o transporte do
verso terceiro para o verso quarto. Temos, pois, um cavaleiro andante,
um palácio encantado, tudo a lembrar a época medieval, os
contos de fadas, a procura do Santo Graal...
Pergunta-se muitas vezes para que serve a rima. Repara:
andante
rima com
anelante
e
escura
com
Ventura.
Será rima só de ouvido? Se fosse o caso, não teria muito
interesse. A poetização faz-se quer a nível do
significante quer a nível do significado. A nível do
significante, podemos determo-nos nos exemplos
apontados. Andante e anelante são adjectivos que se
aproximam pelo som e pelo significado; a rima funciona
por semelhança.
Escura e
Ventura são palavras de
categoria gramatical diferente e de significado
diferente. Por que razão terá o poeta escolhido esta
rima rica? Parece não ser difícil distinguir que se fez
a aproximação destas palavras para sugerir dificuldade.
Não é difícil cavalgar sem nenhuma luz? A Ventura, a
felicidade, não qualquer felicidade, porque as palavras
maiusculadas adquirem significados que transcendem a
denotação, a felicidade profunda, vital, essencial,
felicidade a que leva um autêntico amor, não é difícil
de alcançar? Eis o sentido da rima, eis a poetização do
significante.
Tudo quanto dissemos aponta para elevado grau de
dificuldade. Não admira que o cavaleiro vacile na
primeira prova a que é submetido: "Mas já desmaio,
exausto e vacilante / Quebrada a espada já, rota a
armadura...". A exaustão leva à vacilação, o advérbio de
tempo "já" indica o momento do desmaio. Terá sido grande
a luta? O cavaleiro tinha consigo as suas armas, com as
quais julgava poder conseguir os seus intentos. Todavia,
elas foram destruídas durante a luta. E aconteceu o
desmaio, a queda, mas não a desistência. Quantas vezes
não caímos? Quantas vezes não nos levantamos? Não é a
vida feita de sucessos e de insucessos? A pontuação
reticente pode sugerir o que acabamos de dizer ou ainda
um momento de recuperação de forças: mesmo desmaiado,
tem dentro de si a força que o faz agir: o amor. É por
isso que, de forma quase inesperada, o cavaleiro avista
aquele palácio que procurava. Então, como um náufrago
que avista uma boia, ganha forças. Ganha forças porque o
avistou e ganha forças porque ele era realmente belo,
talvez mesmo muito mais belo do que pensara. Compreendes
por que é destacada a "sua pompa e aérea formosura"?
Antes era um "palácio encantado", agora mais perto é
ainda mais sedutor. Não haverá a intenção de salientar a
qualidade da Ventura, do Sonho?
A passagem de estrofe é estratégica: sugere o tempo
necessário para o cavaleiro chegar ao palácio. O poema é
uma unidade, tem de haver continuidade, não podem
acontecer saltos. Uma vez encontrado o palácio, o que
faz o cavaleiro? Duas acções. Repara na poetização do
significante: "Com
grandes
golpes
bato à
porta e
brado";
construído o verso com monossílabos e dissílabos, a
acentuação tem de sugerir os golpes. Na verdade, os
acentos dominantes recaem nas sexta e décima (verso decassílabo heroico) e as palavras que
os contêm são as que indicam as duas ações. Atenta,
ainda, na repetição (aliteração) dos fonemas destacados a
verde e
na repetição da vogal aberta /a/, a sugerir admiração e
expetativa. Tudo se conjuga para criar um efeito quase
onomatopaico do que acontece. O cavaleiro bate à porta e
simultaneamente (simultaneidade indicada pela conjunção
coordenativa
e) grita. Este verso é um exemplo acabado
do trabalho sobre o significante.
A apresentação do cavaleiro é também notável: "Eu sou o
Vagabundo, o Deserdado..." Novamente as maiúsculas a
conferir significados transcendentes às palavras. Que
significará
Vagabundo? Não o sentido a que nos
habituámos a colar a essa palavra. Os alunos já viram o
uso do adjectivo "vago" em Bocage e em Garrett com o
significado de andante, que vagueia. É esse o
significado neste contexto, aumentado da transcendência
que lhe advém de estar maiusculado: será então aquele
que procura algo de essencial, de vital. E
Deserdado?
Aquele que tem de conquistar a Ventura, porque a
felicidade não é um rebuçado que cai do céu: tem de ser
merecida. Belo tema para os nossos jovens ganharem o
ideal de saber viver, tendo presentes as palavras de
Fernando Pessoa: "Quem quer passar além do Bojador / Tem
que passar além da dor." Qual o grito do cavaleiro?
"Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!". Da luta, do
sacrifício, já falámos; também não admira que as portas
sejam de ouro, pois o palácio é encantado e fulgurante;
a metaforização de todo o palácio é um dado necessário
para evidenciar a grandeza da procura. A pontuação
deixa transparecer a aflição e a expetativa do
cavaleiro, prestes a atingir o seu objetivo. A mudança
de estrofe é também estratégica, como já o vimos
anteriormente.
As portas obedecem a tão ansioso pedido; o ruído que
fazem é sugerido pela repetição do fonema vibrante [r] e
denuncia que poucas vezes se abrem essas portas. O
cavaleiro pode ou não vencer esta terceira prova?
Encontrará ou não a Ventura? Tudo parece indicar que
sim. Mas, oh! crueldade!, não vai vencer. A adversativa
"Mas" indicia uma deceção, consumada com o vazio do
palácio: "Mas dentro encontro só, cheio de dor, /
Silêncio e escuridão - e nada mais." Repara que a "noite
escura" já indiciava impossibilidade. Nota, igualmente, no paralelismo "Mas
já" - disjuntivo temporal - e "Mas dentro" - disjuntivo
espacial. Atenta, finalmente, no paralelismo "já desmaio" e "encontro
só". Não te parece que havia vários indícios de fracasso
ao longo do poema? Se eram abundantes esses sinais, não
se esperava uma tão completa deceção. Um poema é um
percurso - a vida é um percurso - inicia-se e, por
vezes, não se sabe onde vai chegar. Não é esta uma das
atrações da poesia? Um jogo de resultados
imprevisíveis? Se tudo fosse conhecido de antemão, onde
encontrar a magia, o encanto da descoberta? O cavaleiro entrou no
palácio encantado, parecia ter alcançado o que
procurava. Mas apenas encontrou "Silêncio e escuridão -
e nada mais!" Repara como a tonalidade das palavras se
fechou, com os sons nasais, as palavras de sentido negativo, o
pronome indefinido negativo, reforçado pelo advérbio de
quantidade. É que a deceção é completa! O cavaleiro terá de
recomeçar tudo de novo. Quem não vê neste poema a
história de tantas tentativas fracassadas? Quem não vê
neste poema a distância que vai do sonho à realidade?
Quem não vê neste poema o próprio Antero, utópico,
revolucionário, cheio de força, erguendo a espada da
Liberdade, do Amor e da Justiça, mas incompreendido,
recusado? Quem não vê neste poema a alegoria de tantos
jovens sonhadores e incompreendidos? Terá sido então
inútil esta procura? Nada é inútil quando os objetivos
por que se luta são autênticos. Nunca se deve desistir.
Quem sabe se da próxima vez este cavaleiro não
encontrará a sua Ventura! O que terá falhado? Perguntas
que motivam outros textos que poderiam ser escritos.
Fizemos também uma caminhada de análise textual. Estamos
convencidos de que um trabalho destes não deixará de ser
estimulante, pois é um jogo.
GUERRA, J. Augusto da Fonseca; VIEIRA, José Augusto da
Silva
in Aula Viva, Português A, vol. 1, Porto Editora (c/
adaptações)