Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Ua graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbora não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E, pois nela vivo,
É força que viva.
Luís de Camões
Notas: V. 1 - cativa:
escrava; V. 2 - cativo: prisioneiro; VV. 3
e 4: Porque nela vivo /
Já não quer que viva: porque vivo nela
espiritualmente, já não quer que viva sem ela; V. 6 - molhos: ramos; V. 14 - sossegados:
tranquilos; V. 16 - não de o matar: não de
o fazer sofrer de amores; V. 22 - povo vão:
povo com falta de conhecimentos; V. 30 - siso:
juízo; V. 32 - bárbora: este nome está por
bárbara, isto é, desumana; V. 35 - descansa:
termina; V. 36 - pena: sofrimento; VV.
39-40: E, pois nela vivo,/ É força que viva:
e, já que nela vivo espiritualmente, é necessário que eu
viva fisicamente para continuar a merecer dela o seu
afeto.
Neste poema, mais uma vez, Camões volta a fazer uso da
“medida velha”. As endechas são constituídas por cinco
estrofes, em redondinha menor (versos de cinco sílabas),
em conformidade com a herança da poesia palaciana,
famosa pelos jogos de galanteria. Nesta e em outras
composições escritas na mocidade, o poeta não exprime a
amargura e o desengano expressos nas composições
posteriores às suas vicissitudes existenciais.
"Endechas à Bárbara cativa" é um canto de louvor à
beleza de uma mulher negra e escrava que despertara a
paixão do poeta. Para esboçar o perfil da sua musa de
ébano, Camões instaura um jogo de antíteses,
estabelecendo o contraste entre a negritude da cativa e
a alvura da mulher branca e loura, celebrada,
petrarquianamente, pelos poetas seus contemporâneos.
Assim, os cabelos negros de Bárbara são mais belos que
os louros, e seus olhos possuem “Ua graça viva / Que
neles lhe mora. / Pera ser senhora / De quem é cativa”.
Este texto poético de Camões é uma das suas composições
mais geniais, especialmente pela liberdade e
independência com que rompe com o cânone renascentista
que exalta a beleza loura, semelhante à Laura tão
exaltada por Petrarca, a quem todos imitavam e
reverenciavam.
Nesta composição, como em muitas outras, nas quais
descreve mulheres amadas, o eu lírico retrata a "cativa"
mais do ponto de vista moral que físico, dando ênfase a
polos contrastantes como: “cativa-cativadora”;
“cativa-Senhora”; “pretidão-brancura de neve”. Assim,
Camões constrói um retrato impreciso quanto ao aspeto
físico de Bárbara, privilegiando os componentes morais e
espirituais de sua personalidade: “olhos sossegados
/Pretos e cansados / Mas não de matar”, “ua graça viva”,
“doce figura”, leda mansidão", “presença serena”, “...
cativa / Que me tem cativo”, “leda mansidão”, etc.
Bárbara escrava afirma-se como uma mulher exótica,
primitiva, mas dotada de extraordinária leveza, de uma
suavidade marcadamente espiritualizada e superior,
semelhante ao perfil de mulher exaltado por Petrarca.
Todavia, o negrume dos seus olhos, a pretidão da sua
pele e dos seus cabelos assinalam o imensurável
distanciamento da "cativa" em relação ao tipo de mulher
convencional – branca, loura, de faces rosadas –
introduzida na literatura pela poesia petrarquiana.
Laura era o modelo, a moda e a paixão lírica dos poetas
que, como Petrarca, atribuíam à mulher loura e branca o
protótipo de beleza ideal. Ora, Camões, ousadamente,
rompe com esse modelo consagrado direcionando o seu
canto de exaltação a uma negra de pele e cabelos
escuros, por quem se sentia atraído, como está bem
evidente nas primeira e última estrofes do poema, por
meio dos trocadilhos usados pelo sujeito poético:
“aquela cativa / Que me cativa / porque nela vivo já não
quer que viva”; “Esta é a cativa que me tem cativo/ E,
pois nela vivo, / É força que viva”.
De certo modo, a "cativa" assemelha-se à mulher presente
nas cantigas dos trovadores medievais e na poesia
clássica, ou seja, é uma mulher idealizada, inacessível, endeusada,
cuja graça mais sedutora está no olhar, nos “olhos
sossegados”, descrito pelo poeta como “Ua graça viva /
que neles lhe mora. / Pera ser senhora / De quem é
cativa”. Assim, pelo poder de sedução que emana de sua
pessoa, Bárbara cativa torna-se “Senhora” do seu Senhor,
dona do seu dono.
Vale salientar que os versos em redondilha menor
conferem um ritmo leve e ligeiro, de uma suavidade
ímpar, à expressão do envolvimento amoroso do poeta, bem
como à felicidade que lhe proporcionava a “presença
serena", a "doce figura” daquela mulher estrangeira e de
outra raça por quem se apaixonara.
Esta é uma das raras poesias em que Camões fala de um
amor correspondido e venturoso, que se refere à
experiência da paixão, sem o travo do desengano e da dor
da perda, como viria a fazer na maturidade amargurada,
quando se tornou um dos exponenciais 7do Maneirismo
português.
Autora: Zenóbia Collares Moreira, c/ adaptações
QUESTIONÁRIO
1. Apresente (em não mais de meia dúzia de linhas) o
assunto do poema.
2. Faca o levantamento das características físicas e
morais que constituem o retrato de
Bárbara. Que tipo de mulher retratou o poeta?
3. Com base no texto, aponte os principais artifícios de
que o poeta se serve para
salientar as qualidades de Barbara, sobretudo a sua
beleza e doçura, e a atracão que
exercia sobre ele.
4. Faça a descrição formal do poema.
RESPOSTAS
1. O poeta canta a beleza exótica da escrava Bárbara,
que, apesar de cativa, o cativara. O retrato, mais moral
do que físico, desenvolve-se mediante a dinâmica dos
contrastes: cativa / cativadora, cativa / senhora,
pretidão / brancura da neve, Bárbara / delicada.
2. É multo parcimoniosa a retratação física de Bárbara.
Apenas estes traços físicos, aliás muito indefinidos:
bela como a rosa, como as
flores,
como as
estrelas,
rosto singular
(exótico),
olhos pretos,
cabelos pretos.
Mais acentuado, embora continuando de linhas muito
imprecisas, é o retrato moral (espiritual):
olhos sossegados
(notar como os olhos a caracterizam física e moralmente)
e cansados / Mas não de matar
(não se trata de uma mulher fatal),
ua graça viva
( o determinante indefinido a sugerir a subtilidade
dessa graça),
senhora
(em contraste com cativa),
doce figura,
leda mansidão /
Que o siso acompanha,
...estranha, / Mas bárbara não
(isto é, exótica, mas não de costumes bárbaros - tenha
em atenção que o eu lírico recorre ao adjetivo
bárbara,
jogando com o seu nome próprio Bárbara),
presença serena,
catlva
(que aqui tem mais o valor de adjetivo do que de
substantivo, o que se constata pela utilização do
trocadilho:
Esta é a cativa
(submissa)
que me
tem cativo.
Esta figura de mulher oriental, exótica, indefinida,
quase inefável, surge-nos assim num retrato em que todo
o sortilégio vem de qualidades espirituais: "doce
figura", "presença serena", "leda mansidão".
Verifique-se que estas qualidades sugerem um porte
senhorial, em oposição à sua condição de escrava (...
parece estranha, / Mas barbara não).
Embora o retrato de Bárbara, marcadamente espiritual, se
revista de qualidades que se enquadram dentro do tipo de
mulher petrarquista, a cor dos olhos e dos cabelos
(pretos) está longe de pertencer ao grupo de mulher
cantada por Petrarca (Laura). Na verdade, e contra as
convenções do petrarquisrno, que via na mulher loira a
formosura ideal, Camões canta uma formosura oriental,
indígena.
3. A atração exercida por Bárbara sobre o poeta é
salientada nas primeira e última estrofes por uma série
de trocadilhos: "Aquela cativa / Que me tem cativo, /
Porque nela vivo / Já não quer que viva"; "Esta é a
cativa / Que me tem cativo, / E, pois nela vivo, / É
força que viva".
Para realçar a beleza de Bárbara, o eu da enunciação,
comparando-a com a rosa, as flores, as estrelas, fá-la
suplantar a beleza delas. Os adjetivos caraterizadores
do rosto e dos olhos (rosto
singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados)
apresentam-na como uma mulher exótica, de olhos
moderadamente românticos, sem serem propriamente fatais
("olhos... pretos e cansados, mas não de matar”).
Mais claramente aparece-nos como mulher clássica,
inacessível (mulher deusa), nestes versos: "Ua graça
viva / que neles lhe mora, / para ser senhora de quem é
cativa". Note-se a expressividade do indefinido ua”,
realçando uma graça indefinível, misteriosa, embora
viva; da forma verbal mora (aspeto durativo), vincando a
persistência dessa graça nos seus olhos; do paradoxo
contido em ser senhora de quem é cativa (pela sedução
ela tornava-se senhora do seu senhor, dona do seu dono).
O sujeito poético serve-se, depois, de uma série de
relações antitéticas para conseguir o mesmo efeito -
realçar a beleza de Bárbara: a beleza dos cabelos pretos
suplanta a dos louros; a sua pretidão é mais bela que a
brancura da neve; ela parece
estranha
(exótica) mas
bárbara
não (repare-se como este adjetivo
bárbara
(não civilizada, selvagem) se relaciona com o seu nome
próprio
Bárbara
(mais um trocadilho implícito); a sua presença serena
acalma a tormenta e o sofrimento (pena) do poeta.
É admirável a escolha da adjetivação. Além de alguns
adjetivos já citados, atente-se na expressividade do
adjetivo leda (leda
mansidão / que o siso acompanha).
A mansidão acompanhada de siso poderia dar a ideia de
uma mulher apagada, sem vida, sisuda. Mas uma
leda mansidão
já aponta não para uma mulher sem vida, mas para uma
"presença serena", uma "doce figura” (frise-se a
expressividade dos adjetivos
doce
e
serena).
4. O poema é constituído por cinco oitavas, com versos
de cinco sílabas (redondilha menor). A rima é
interpolada e emparelhada, como se vê pelo esquema
rimático da primeira estrofe, que se repete em todas as
outras estrofes: ABBACDDC.
O ritmo ligeiro, próprio destes versos de redondilha
menor, é adequado para exprimir apenas um transporte
amoroso, a alegria e o alívio espiritual que causavam ao
poeta aquela
presença serena,
a doce figura daquela mulher oriental.
Não se trata aqui da expressão de um sentimento de dor
profunda pela ausência ou não correspondência da mulher
namorada, para o que estaria indicado o ritmo mais largo
do verso decassilábico. Este poema não desprimora aquele
jogo de galanteria que vem da poesia palaciana e é
sempre vazado em "medida velha“.
BORREGANA, António Afonso, Textos em
análise I, c/ adaptações.