O dia em que eu nasci, moura e pereça
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
Camões, Luís de, 1994. Rimas. Coimbra: Almedina
Notas:
V. 1 - moura: morra (do latim moriat,
que deu moira por hipértese e moura por
alternância): morra é uma forma analógica; V. 4 -
nesse passo: nesse dia; V. 4 -
padeça: sofra; V. 9 - pasmadas de
ignorantes: pasmadas por ignorarem que tal dia
tinha sua explicação; V. 12 - temerosa:
receosa (temor + osa > temerosa,
por dissimilação).
Os aspetos que me parecem mais interessantes neste
conhecido soneto camoniano são o narcisismo e a
teatralização do desencanto que certamente terá abalado,
por diversas vezes, o homem que transformou em poesia a
amargura, o desespero, o desconcerto sentimental e
social e a miséria.
A desgraçada vida de que o sujeito poético aqui se
lamenta resulta de um acontecimento fortuito e
totalmente alheio à sua vontade porque quem está para
nascer não pode escolher o dia em que o seu nascimento
acontece. Deste modo, anula a sua contribuição pessoal
para a vida «desgraçada» de que se queixa e procura a
origem do seu mal-estar no destino adverso que o pôs no
mundo no dia errado.
Assim, poderá pensar-se que, se o sujeito poético
tivesse vindo ao mundo noutro dia, a sua vida teria
sido, eventualmente, diferente. No entanto, uma tão
grande vontade de fazer desaparecer o dia em que nasceu
corresponde à verbalização de um grito de indignação com
o poder que assumiram, na vida do Eu, circunstâncias que
não pôde dominar, desejos frustrados e ânsias nunca
concretizadas que, possivelmente, no decurso do tempo,
lhe deram a impressão de ter vivido no ghetto dos
desamparados da vida.
Tratando-se, entretanto, de um soneto no qual existe, em
paralelo com a confissão do intenso desespero do sujeito
poético, a intenção de fazer apiedar o leitor sobre a
triste sorte daquele, pensa-se que é também de lamentar
a triste sorte da «gente
temerosa»
que o Eu apostrofa no verso 1 do segundo terceto. Essa
gente representa as pessoas indefesas, caso o
desejo do sujeito poético se viesse a realizar porque,
contrariamente ao criador do mesmo, que sabe quando o
apocalipse destruirá o dia em que nasceu, as outras
pessoas nada sabem sobre a ameaça que paira sobre elas
imaginada por um sujeito poético concentrado no seu
sofrimento e indiferente às «lágrimas
no rosto»,
à «cor
perdida»,
ao ambiente de loucura coletiva que irá afetar de tal
modo tudo e todos que se chega ao ponto de nem a mãe
conhecer o próprio filho, entre a escuridão derivada do
eclipse, os «monstros»
que surgem do nada e os lamaçais de chuva de sangue.
É interessante notar que o sujeito poético não pede à
gente que será vítima do cataclismo descrito que parta
para longe ou que se proteja como for possível nesse dia
fatídico: pede-lhes apenas que «não
se espantem».
As vítimas, «ignorantes»,
têm o direito de se mostrar «temerosas»
e o dever de compreender que a tragédia que se poderá
abater sobre elas se justifica porque «este
dia deitou ao mundo / a vida mais desgraçada que jamais
se viu»,
a vida de um eu lírico que, para que se faça justiça,
deseja a destruição do mundo que o destruiu a ele.
Os horrores imaginados pelo Eu configuram um cenário de
vingança relativamente a uma nação que não soube
reconhecer-lhe o mérito e representam a compensação
psicológica desejada, fruto de todas as injustiças de que foi alvo.
Amaldiçoar o dia em se nasceu significa o reconhecer
amargamente que se viveu demasiado tempo na sombra à
espera de um lugar ao sol que nunca chegou a existir.
Significa também a ausência de uma luz de esperança ao
fundo do túnel e talvez por isso haja uma tão grande
insistência na escuridão neste soneto, que mais não é
que o retrato da paisagem interior do sujeito poético.
No entanto, e não obstante a dor de existir de que o
poema se faz eco, há uma excessiva
teatralização do sofrimento pela razão de que ele é
transferido para uma realidade exterior ao Eu, o palco
do mundo, no qual é representada uma cena do apocalipse,
peça engendrada pelo Eu-dramaturgo que a observa e gere
dos bastidores e que, para melhor comover o espetador,
lança mão de seres e acontecimentos espetaculares e
fantásticos que causam admiração, mas não comovem.
in
http://atena2010.wordpress.com/2012/02/02/o-dia-em-que-eu-nasci-moura-e-pereca/
1.
ASSUNTO:
Este soneto foi inspirado no Cap. III do Livro de Job
que começa assim:
«...Depois
de tudo isto, Job abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu
nascimento. E falou desta maneira: pereça o dia em que
nasci e a noite em que foi dito: foi concebido um varão!
Converta-se esse dia em trevas! Deus, lá do alto, não se
incomode com ele. Apoderem-se dele as trevas e a
obscuridade. Quê as nuvens o envolvam e os eclipses o
apavorem! Que a sombra o domine; não se mencione esse
dia entre os dias do ano, nem se compute entre os meses
(...). Amaldiçoem-no os que aborrecem o dia;
obscureçam-se as estrelas do seu crepúsculo; em vão
espere a luz e não veja abrirem-se as pálpebras da
aurora, já que não fechou o ventre que me levou, nem
afastou a miséria dos meus olhos! Porque não morri no
seio da minha mãe ou não pereci ao sair das suas
entranhas?»
Aqui também Camões, retomando o tema do desconcerto do
mundo já tratado nos Cancioneiros primitivos, pede que
ninguém se admire, porque esse dia «...deitou
ao mundo a vida / mais desgraçada que jamais se viu».
E tal é o seu desespero que, se tal dia voltasse a
repetir-se, desejaria para ele as piores maldições.
2.
ATENTE:
a) Na estrutura lógica do soneto: em todo ele o eu
lírico lança uma imprecação ao dia (a palavra-chave) que
o viu nascer, a qual se vai avolumando cada vez mais
devido ao ritmo nervoso e emotivo, conseguido pela
variedade de extensão dos segmentos melódicos, até que
nos dois últimos versos dá uma informação explicando à «gente
temerosa»
a causa dessa mesma imprecação.
b) Que, deste modo, a nível lógico, o discurso se
apresenta com uma prótase (primeira parte de uma frase /
período) longuíssima para cair abruptamente numa apódose
(segunda parte de uma frase / período) curta e
cheia de raiva.
c) Que o último verso muda de ritmo pois, em vez de ter
os acentos métricos na 6.ª e 10.ª sílabas, como os
restantes, tem-nos na 4.ª, 8.ª e 10.ª, a fim de fazer
ressaltar não só o desalento pela cadência mais
compassada e vagarosa, mas também acentuar mais e mais a
ideia nele contida e que serve, aliás, de remate a toda
a composição.
d) Na alternância das rimas em /-a/
aberto e /-e/
fechado para com elas mostrar o espanto e o terror,
assim como o aparecimento nos tercetos da assonância em
/-i/
(«perdida
/
destruiu
/
dia
/
vida
/
jamais
/
viu»),
a traduzir uma espécie de grito de alma desesperada.
e) Na mesma ordem de ideias, isto é, a nível fónico, a
visível predominância de consoantes explosivas (/-q/,
/-p/,
/-c/,
/-t/),
o que vem a sublinhar o ritmo obsessivo e o nervosismo
que pairam sobre a semântica do discurso, sugerindo a
revolta do eu lírico.
f) No pleonasmo no primeiro verso (moura
/
pereça),
para reforçar a ideia de que o sujeito poético, cujo
sofrimento é imenso, desejava que o dia em que nasceu
jamais tivesse existido.
g) Nas aliterações em /-q/,
/-p/,
/-c/,
/-t/,
/-d/,
mas sobretudo em /-s/,
com as quais o eu lírico melhor acentuar as ideias de
revolta e de sofrimento que se prolonga no tempo.
g) Nos conjuntivos optativos a manifestarem um desejo
obsessivo.
3.
ESQUEMA RIMÁTICO:
ABBA / ABBA/ CDE / CDE, com rimas interpoladas e
emparelhadas, nas quadras; interpoladas, nos tercetos;
consoantes ao longo de toda a composição, feminina
ou grave e masculina ou aguda, esta última a sugerir a
dor do sujeito poético, mediante a repetição dos sons /-a/
e /-iu/.
BRAGANÇA, António
(1981). Textos e
comentários, c/
adaptações.