Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só por que nunca falte onde sobeja.
Mas este puro afecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,
Assim meu pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
Notas:
V. 3 - delgado: delicado, espiritual; V. 7 -
logo: portanto; V. 9 - afeito:
afeto, sentimento; V. 9 - se dana: se
corrompe.
Formalmente o poema “Pede-me o desejo, Dama, que vos
veja”, de Luís de Camões, é um soneto constituído por duas
quadras e dois tercetos em versos decassilábicos. O
texto obedece ao esquema rimático dos sonetos –
ABBA / ABBA / CDE / CDE, havendo rima interpolada em A,
emparelhada em B e interpolada em C, D, E.
O tema do
soneto é o Amor.
O Amor surge apresentado ao longo do poema de forma
contraditória: o amor ideal (puro/platónico) e o amor
físico (erótico/sensual). Estes dois tipos geram um
conflito no sujeito poético, pois este pede, em apóstrofe, à Dama
a satisfação do desejo físico:”Pede-me o desejo, Dama,
que vos veja”, e de imediato clarifica o seu erro e
quase pede desculpa: “não entende o que pede; está
enganado”. A personificação do desejo ajuda a que o
poeta, de certa forma, se distancie dele:”Pede-me o
desejo”, pois o amor é “tão fino e tão delgado”, ou
seja, é ideal, puro, e por isso o desejo, que remete
para a sensualidade, “está enganado”. Para esclarecer
esta ideia, o sujeito poético utiliza a lógica,
afirmando que tudo na natureza deseja perpetuar o seu
estado, não podendo, por isso, o desejo ser nunca
satisfeito: “Não há cousa a qual natural seja / que não
queira perpétuo seu estado; / não quer logo o desejo o
desejado, / porque não falte nunca onde sobeja.”.
A segunda parte do poema introduz, de certa forma, o
desgosto do poeta, ao verificar que o seu “puro afeito”
“se dana”, pois, sendo um elemento da natureza, tal como
a pedra, o sujeito poético não se liberta do desejo e, à
semelhança desta que “tem por arte / o centro desejar da
natureza”, também ele tem desejo, uma “baixeza”, pois
reduz o pensamento à sua parte “terrestre [e] humana”,
impedindo assim de ascender ao ideal.
Realiza-se aqui o esboço duma possível análise do soneto
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja, de Luís de Camões,
à luz das Linhas de Leitura propostas por Maria Vitalina
Leal de Matos em A Lírica de Luís de Camões. Para tanto,
partiremos da observação da engrenagem silogística do
poema, estrofe a estrofe, no intuito de demonstrar como,
na oposição entre a teoria e a prática, a ação predomina
em detrimento da idealização apesar do domínio sobre a
teoria se fazer presente na poética camoniana.
Na primeira estrofe é estabelecida a proposta do poema:
o “eu-lírico” afirma que o desejo pede que ele a veja,
mas que (o desejo) está enganado porque o amor é tão
delicado a ponto de quem ama não saber o que, de fato,
deseja.
A segunda quadra vem explicar, por meio dum silogismo,
qual é o caráter do desejo: parte da proposição de que
nada natural não quer perpétuo estado, ou, mais
claramente, tudo o que é natural pretende-se perene,
portanto o desejo não quer o desejado para que se
mantenha sempre desejando. Daí deduzimos que o desejo é
natural e que o objeto desejado deve ser necessário e
inalcançável para que o primeiro exista e mantenha-se
eterno.
O primeiro terceto, iniciado pela adversativa, vem
indicar que, embora o eu-lírico saiba que o desejo, como
cousa natural, pretende-se eterno, nele isto não se
aplica. É introduzido um cotejo que será encerrado no
último terceto do poema: assim como a grave pedra, a
ciência, o pensamento, a filosofia, deseja o centro da
natureza, o pensamento, ou desejo dele, pediu que ele
fosse vê-la porque ele é uma criatura terrestre, humana.
A parte “terrestre [e] humana” à qual a
personagem-sujeito se refere está ligada diretamente à
prática, embora tenha demonstrado anteriormente que tem
domínio sobre os princípios teóricos, contemporâneos ao
poema, que pregam a procura pela manutenção eterna do
que é natural.
É deste modo que a análise proposta no poema procurar
distinguir teoria e prática, diferenciando o pensamento
e a ação.
Sob o ponto de vista da teoria, que crê na cousa natural
querer perpétuo seu estado, a ação, que leva o
“eu-lírico” à concretização do desejo, vendo a Dama, é
caracterizada como “baixeza”.
É interessante observar que, embora, sob a perspectiva
do plano dos princípios o ato de vê-la seja apontado
como baixeza típica do humano, o “eu-lírico” faça
questão de assumir sua “falha” e demonstrar, ao final do
poema como aquela teoria não serve de nada ao ser
terrestre e humano.
Desta maneira, fica evidenciado no poema em questão que
apesar de coexistirem, como afirma Maria Vitalina Leal
de Matos, o carnal e o espiritual, a estância prática,
humana e carnal é privilegiada por Camões, em detrimento
da teórica, sobre-humana e idealizada.
1. O poeta debate-se, logo na primeira quadra, entre
duas concepçoes ae amor. Procurando interpretar essa
quadra, referia-se aos dois conceitos-de amor, dizendo
para qual se inclina o poeta.
2. A segunda quadra é uma confirmação silogística dessa
inclinação (ideal) do poeta. Sintetize, também de forma
silogística, a argumentação do poeta (na segunda
quadra).
3. Já notou certamente que o sentido dos dois tercetos
do soneto está em oposição com o sentido das duas
quadras.
3.1. Em que consiste essa oposição?
3.2. Tal oposição não redundará numa divisão da
personalidade do poeta, que não consegue harmonizar o
plano teórico (ideal) e o plano prático (real)?
4. O sujeito de enunciação (poeta), para se justificar
do seu procedimento real, contrastante com o plano
ideal, serve-se de uma comparação muito expressiva (nos
dois tercetos). Comente essa expressividade contextua/.
5. O poeta ter-se-á preocupado mais com a escolha
vocabular, ou com a articulação frásica? Relacione a
resposta com o caracter silogístico e argumentativo do
poema.
6. A resposta à pergunta anterior poderá ajudá-lo a
responder a mais esta questão. Qual dos aspectos
predomina no poema: o emotivo ou o inteletual?
CENÁRIO DE
RESPOSTAS
1. O eu lírico, na primeira quadra, considera um
contrasenso o desejo que o impele de ver a mulher amada
(note-se que este desejo de a ver era o desejo carnal de
a possuir), pois se trata de um amor tão fino e delicado
(espiritual) que nunca poderá concretizar-se numa
satisfação sensual.
Debatem-se, portanto, duas concepções de amor: o amor
espiritual (platónico) e o amor sensual (carnal). É
claro que o poeta (aqui ainda num plano ideal,
intelectual) se inclina para o amor espiritual (o
desejo... está enganado; não sabe o que deseja).
2. Esta inclinaçãb (ideal) do sujeito poético é
confirmada silogisticamente na segunda quadra: tudo o
que ek.iste na natureza tende a conservar-se para sempre
tal como é. Ora é próprio do desejo (enquanto desejo)
não possuir a coisa desejada, porque, se a possuísse,
deixaria de a desejar, isto é, de ser desejo. Logo o
poeta julga que ver a amada, isto é, posSuí-la, seria
matar o próprio desejo, destruir o amor. Note-se que já
na poesia trovadoresca (cantares de amor) a regra era a
não concretização carnal do amor, até para que não
-morresse a tensão que era o segredo da inspiração
poética.
3.
3.1. A segunda parte do soneto (os dois tercetos) está
em oposição com o ideal expresso na primeira parte.
Note-se o mas (adversativo) a introduzir esta segunda
parte (mas este puro efeito em mim se dana). Quer dizer,
aquilo que em teoria ele admitia como certo era
contradito pela sua própria experiência (em mim se
dana). É explicitada a razão: assim como a pedra é
atraída pelo centro da terra (lei da gravidade), assim
ele, por impulso da sua natureza terrestre (corpo), era
fatalmente levado a desejar carnalmente a mulher amada.
3.2. o sujeito poético debate-se assim entre duas torças
contraditórias: uma que vem do plano teórico (ideal), e
outra do plano prático (a realidade da vida). A prática
parece aqui mais forte que a teoria. Usando a expressão
de António J. Saraiva, o poeta debate-se entre Laura
(amor espiritual) e Vénus (amor sensual). Aqui, Vénus (o
corpo) parece levar a melhor sobre Laura (o espírito).
4. O sujeito da enunciação compara a força com que é
atraído fisicamente pela mulher amada à força da
gravidade que atrai as pedras para o centro da terra. É
evidente que a lei da gravidade não é passível de sofrer
excepções - é fatal. Assim também a força sensual com
que a bem amada atrai o poeta é fatal e funciona na
realidade, ainda que a idealidade aponte o contrário.
5. O vocabulário do texto é todo ele simples e
certamente dentro da linguagem da norma, no tempo do
poeta. Não houve a preocupação da escolha de termos
polivalentes. Os sentidos conotativos estão praticamente
ausentes do texto. O autor preocupou-se sobretudo com a
articulação das frases, com o desenvolver do seu
raciocínio. Note-se a predominância da subordinação (uma
oração integrante, seis relativas, uma consecutiva, duas
causais) sobre a coordenação, que quase não existe. Tudo
isto são características sintácticas do discurso
argumentativo (silogístico).
6. O facto de os sentidos conotativos estarem quase
ausentes do texto e de a sintaxe ser adequada ao
discurso argumentativo leva-nos à conclusão de que o que
o autor pretendeu foi a clareza da argumentação
intelectual e não a ambiguidade da linguagem emotiva. O
intelectual predomina, pois, sobre o emotivo.
BORREGANA, António Afonso, Textos em análise, c/
adaptações.