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ANÁLISE DO SONETO

 

- Quando o sol encoberto vai mostrando -

 

Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de ũa praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;
Ali, co'a mão na face, tão formosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa;
Agora estando queda, agora andando.
 


 

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos, tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura.

Aqui se entristeceu, ali se riu.
E, enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura.

Notas: V. 2 - quieta: sossegada; V. 2 - duvidosa: incerta;   V. 2 - quieta: hesitante, incerta; V. 4 - inimiga: mulher amada (inimiga porque agora já não o ama mais); V. 5 - concertando: compondo, arranjando; V. 7 - cuidosa: pensativa, apreensiva, inquieta; V. 10 - isentos: despreocupados, não presos no poeta; V. 11 - movida: comovida; V. 11 - segura: tranquila.

 

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Comentário genérico:

 

Formalmente o poema “Quando o Sol encoberto vai mostrando”, de Luís Camões, é um soneto, pois é constituído por duas quadras e dois tercetos, formados por decassílabos, e respeitando o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, havendo, portanto, quanto ao tipo, rima interpolada em A, emparelhada em B e interpolada também em CDE.

Ideologicamente, o soneto aborda a ausência da mulher e as lembranças que dela tem o eu lírico. A organização das ideias processa-se em três partes lógicas. Numa primeira parte, é feita uma localização no espaço (“uma praia deleitosa”) e no tempo (“mostrando ao mundo a luz”), ou seja, tudo se passa junto ao mar e ao nascer do dia.

 

Na segunda parte, constituída pela segunda quadra e pelo primeiro terceto, o eu da enunciação, que se perde em lembranças de mulher amada, alterna momentos espaciais e temporais, utilizando deíticos (aqui / ali) e (agora / agora), que transmitem liricamente a recordação de uma série de comportamentos que ajudam a traçar o retrato da amada e a proximidade que no passado existiu entre os dois: “Aqui a vi, os cabelos concertando;/ Ali, co'a mão na face tão, formosa; / Aqui falando alegre, ali cuidosa;”. Estas lembranças causam sofrimento no sujeito poético, que vai surgir expresso no último terceto.

 

Com efeito, na terceira parte, que compreende os dois últimos versos, está presente a chave de ouro. “Enfim” é uma expressão de síntese conclusiva, pois o poeta reúne o seu sofrimento e desgaste psicológico numa expressão globalizante: “cansados pensamento”, que o acompanham de forma duradoura ao longo de uma vida “vã”, ou seja, sem esperança, a qual, para infelicidade do sujeito poético, “sempre dura”.


Texto de Fábio Pinto e Fábio Gonçalves, com adaptações.

 

 

QUESTIONÁRIO
1. Qual o assunto do poema e como é que nele se faz o desenvolvimento lógico das ideias?
2. Analise a linguagem e estilo do texto, realçando sobretudo os processos de que o poeta se serviu para evocar a mulher ausente e para caraterizar o estado de espírito do eu lírico perante essa evocação.
3. Ao analisarmos este poema, fica-nos a ideia de que o poeta sintetiza num único momento (o presente em que medita sobre a mulher amada) os três tempos: passado, presente e futuro. Se está de acordo, justifique.
4. Paira no poema o conceito de mulher petrarquista (mulher ausente). Porém, aqui, como noutros sonetos de Camões, é claro que o poeta não se confina aos limites do amor platónico, mas aos sentimentos expressos, sendo manifestado um amor obsessivo cuja não correspondência torna a sua vida sem sentido. Com base no poema, justifique estas afirmações.
 

RESPOSTAS

1. O sujeito poético, ao longo de uma praia e à luz de um sol envergonhado, evoca diversas atitudes contraditórias da sua amada, concluindo que assim está condenado a levar uma vida sem sentido.
 

O desenvolvimento deste assunto processa-se em três partes lógicas. Na primeira parte (primeira quadra), o sujeito poético descreve o espaço ("Ao longo de uma praia deleitosa") e o tempo (o "Sol encoberto", de "luz quieta e duvidosa") em que ele estava pensando na sua amada. Na segunda parte, que engloba a segunda quadra e o primeiro terceto o eu lírico faz a descrição evocativa da sua amada, enumerando as suas atitudes contraditórias. Finalmente, na terceira e última parte (dois últimos versos), refere-se às repercussões dessas atitudes contraditórias na sua vida, que ele carateriza como sendo vã, logo, sem sentido).

 

2. O adjetivo expressivo tem uma função primordial na caracterização do estado de espírito quer do sujeito poético, quer da sua namorada. Assim, logo na primeira quadra, o eu da enunciação afirma que vai imaginando a sua “inimiga”. Este adjetivo substantivado sugere não só a falta de correspondência por parte dela, mas também um certo ciúme da sua parte. Na verdade, “inimiga" contrapõe-se àquilo que deveria ser uma namorada: amiga. Entretanto, era numa praia “deleitosa” que o poeta evocava a sua amada.

O adjetivo deleitosa funciona como antítese do estado de vida amargurada que a falta de clareza da amada provocava no eu lírico. Também os adjetivos caraterizantes do tempo ("Sol encoberto", "luz quieta e duvidosa") são a premonição de que a luz se vai apagando na alma do poeta e de que a um prazer sonhado se sucederá a dor. Note-se que há aqui a personificação ou animização do Sol (com maiúsculas) a sugerir como a própria natureza previa e sentia já a tristeza do sujeito poético.

Ainda a caraterizar o estado psíquico do "eu", encontramos as expressões: cansados pensamentos (pensamentos que não levam a nada, que deixavam apenas o cansaço) e vida vã (vida sem sentido, inútil).

E quanto à namorada? Como é que ela é rememorada pelo eu da enunciação?De forma contrastante. Efetivamente, é apresentada como tendo uma face "tão formosa" (note-se a intensificação da beleza conferida pelo advérbio de quantidade "tão"), ora está alegre ora cuidosa, ora surge comovida ora segura. Entretanto, para mal do sujeito poético, tem olhos isentos (despreocupados, não interessados em si). Vemos, então, que a expressividade dos adjetivos apontados ressalta ainda mais pelo facto de se tratar de adjetivação antitética. Com efeito, toda a caraterização da namorada (caraterização indireta, pelas suas atitudes) é feita por contrastes ou antíteses: "Aqui a vi, os cabelos concertando; / Ali, co'a mão na face, tão formosa; / Aqui falando alegre, ali cuidosa; / Agora estando queda, agora andando; / Aqui movida um pouco, ali segura; / Aqui se entristeceu, ali se riu". Note-se ainda a forma engenhosa como o poeta torna realista e movimentada a descrição das atitudes da namorada, pela reiteração (repetição dos deíticos aqui, ali, agora... agora), donde resulta uma construção ao mesmo tempo paralelística e antitética. De realçar também a visualidade que a perifrástica e o use do gerúndio imprimem à descrição: vai mostrando, vou imaginando; os cabelos concertando; falando alegre; estando queda, andando; erguendo aqueles olhos. Assim, temos a sensação de ver o eu lírico a imaginar e a namorada a agir.


3. No princípio do poema, aparece-nos o presente (vai mostrando, vou imaginando). É o presente do eu lírico, é a hora da sua meditação, da sua perplexidade, do seu sofrimento. Mas logo que começa a evocar a sua amada, surge o passado (vi, esteve, entristeceu). O passado é, pois, a experiência vivida, que não dá ao sujeito lírico felicidade no presente. Daí que volte, no fim, após a evocação da sua amada, ao tempo presente (o momento das frustrações): "... nestes cansados pensamentos / passo esta vida vã...". Mas quando acrescenta “que sempre dura”, já está a referir-se ao futuro, que também não deixa margens para otimismo: "Passo esta vida vã, que sempre dura", isto é, ele continuará, no futuro, uma vida sem sentido. Vemos, portanto, que o presente é o traço de união entre o passado e o futuro e é ali que se sofre o fracasso do passado e a falta de esperança no futuro. Veremos que também Fernando Pessoa tem esta visão sintética do tempo, sintética e dramática, pois, tal como sucedeu a Camões, não lhe será possível (se excetuarmos a experiência do heterónimo Alberto Caeiro) abstrair-se do passado e do futuro, para viver tranquilamente o presente. Parece, assim, que os grandes génios da literatura estão condenados a serem também génios do sofrimento, por nunca encontrarem a felicidade, isto é, por nunca se encontrarem.


4. Além de se tratar de uma mulher ausente, o seu retrato é sobretudo psíquico. As suas atitudes, mesmo quando físicas, revelam qualidades da alma. Os cabelos, os olhos e as faces, únicos elementos físicos focados, conotavam, na poesia clássica, qualidades do espírito. Trata-se, portanto, fundamentalmente, do tipo de mulher petrarquista. Mas quando o sujeito poético a apelida de inimiga, revelando ao mesmo tempo a queixa de não ser correspondido e uma ponta de ciúme, e quando afirma estar condenado a levar uma "vida vã" (sem correspondência da namorada), já duvidamos que ele se confine a esse tipo de mulher espiritualizada (petrarquista) e que o seu amor se contenha dentro dos limites do amor platónico. Tal como afirma António J. Saraiva, Camões viveu repartido entre Laura (amor petrarquista) e Vénus (amor sensual).
 

BORREGANA, António Afonso, Textos em análise I, c/ adaptações.

 

 

OUTRO QUESTIONÁRIO

 

(exame nacional de Literatura Portuguesa, código 734, 1.ª fase de 2012)


1. Explicite a relação que se pode estabelecer entre o sujeito poético e o cenário físico.
2. Refira um dos valores expressivos da repetição de «aqui», «ali» e «agora» (versos 5-    9 e 11-12).
3. Apresente quatro traços do retrato da figura feminina.
4. Comente o sentido que a conclusão do soneto produz (versos 13-14).

 

CENÁRIO DE RESPOSTAS

 

1. É importante a relação entre o sujeito poético e o cenário físico na construção do sentido do soneto. Assim, o «Sol encoberto» (v. 1) e a «luz quieta e duvidosa» (v. 2) criam um ambiente propício ao devaneio e à rememoração, naquela «praia» (v. 3) que se torna «deleitosa» (v. 3) por ser o espaço em que o «eu» se move, «imaginando» a sua «inimiga» (v. 4).

 

2. A repetição de «aqui», «ali» e «agora» (vv. 5-9 e 11-12) tem, entre outros, os seguintes valores expressivos:
− criar uma atmosfera de grande tensão subjetiva, uma vez que está associada ao processo de rememoração, de reconstrução mental das imagens da sua «inimiga» (v. 4) por parte do sujeito poético;
− acentuar a diversidade das imagens que representam a figura feminina;
− realçar o modo de composição do retrato por traços contrastados par a par (vv. 5 e 6; vv. 6 e 7; v. 8; vv. 9 e 11; v. 12);
− imprimir aos versos um ritmo cadenciado.

 

3. Traços do retrato que no poema é feito da «minha inimiga» (v. 4): a beleza («face tão fermosa», v. 6); a alegria («alegre», v. 7); a melancolia («cuidosa», v. 7); a candura («olhos tão isentos», v. 10); a instabilidade (quer «movida», ou inquieta, quer «segura», ou calma, v. 11; ora triste, ora risonha, v. 12). De notar também os gestos graciosos, vivos e espontâneos («os cabelos concertando» – v. 5; «a mão na face» – v. 6).

 

4. Os dois versos finais constituem uma meditação sobre a distância intransponível entre a ilusão que a memória é capaz de criar e a realidade da vida presente – sem perspetiva de mudança, porque «sempre dura» (v. 14) – do sujeito solitário, reduzido às suas imagens ou «pensamentos» (v. 13).

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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