Peço-vos que me digais
as orações que rezastes
se são pelos que matastes,
se por vós, que assi matais?
Se são por vós, são perdidas;
que, qual será a oração
que seja satisfação,
Senhora, de tantas vidas?
Que, se vedes quantos vêm
a só vida vos pedir,
como vos há Deus ouvir
se vós não ouvis ninguém?
Não podeis ser perdoada
com mãos a matar tão prontas,
que, se nῦa trazeis contas,
na outra trazeis espada
Se dizeis que encomendando
os que matastes andais,
se rezais por quem matais,
para que matais rezando?
Que, se na força do orar
levantais as mãos aos Céus,
não as ergueis para Deus,
erguei-las para matar.
E quando os olhos cerrais
toda enlevada na fé,
cerram-se os de quem vos vê,
para nunca verem mais.
Pois se assi forem tratados
os que vos vêm quando orais,
essas horas que rezais
são as horas dos finados.
Pois logo, se sois servida
que tantos mortos não sejam,
não rezeis onde vos vejam,
ou vede para dar vida.
Ou, se quereis escusar
estes males que causastes,
ressuscitai quem matastes,
não tereis por quem rezar.
Luís de Camões
Notas:
V. 1 - ῦa: uma (por nasalação).
QUESTIONÁRIO
Analise o texto, segundo as seguintes linhas de leitura:
1. Assunto e seu desenvolvimento em partes lógicas.
2. Artifícios estilísticos, realçando os que contribuem
para dar ao texto um certo tom maneirista.
3. Enquadramento do texto dentro das marcas do autor e
da época (não deixe de ligar este tipo de poema à lírica
tradicional anterior a Camões).
RESPOSTAS
1. Assunto: o poeta pede a uma dama, que está a rezar,
que não reze porque, quer reze por ela, quer pelos que
matou (fez perder por amor), as suas orações serão
inúteis, pois ela continua a matar (fazer perder) ao
mesmo tempo que reza. Roga-lhe, ainda, que ressuscite os
que matou para não mais precisar de rezar.
O assunto desenvolve-se em três partes lógicas. A
primeira é constituída pelos primeiros quatro versos da
primeira estrofe, em que o sujeito lírico pergunta à
dama se reza por ela ou pelos que perdeu.
Na segunda parte (últimos quatro versos da primeira
estrofe e toda a segunda estrofe), o eu da enunciação
insiste com a dama: se reza por ela, não há orações que
a perdoem, pois ela, ao mesmo tempo que reza, continua a
matar.
Na terceira parte (terceira e quarta estrofes), o
sujeito poético continua a assegurar à dama que, se reza
pelos que mata, as suas orações serão igualmente
inúteis, pois ela mata ao mesmo tempo que reza (os
homens morrem vendo-a rezar).
Finalmente, na quarta e última parte (última estrofe),
reitera-se o pedido à dama para que reze onde a vejam,
dado que só dessa maneira poderá não causar mais mortos.
Suplica-lhe, em contrapartida, que ressuscite os que
matou, de forma a ser perdoada e a não precisar mais de
orar.
2. O artifício mais em evidência é constituído pelos
trocadilhos ou jogos de palavras que são, por vezes,
também jogos de conceitos: "se são pelos que matastes /
se por vós que assim matais”; "como vos há Deus de ouvir
/ se vós não ouvis ninguém?"; “se rezais por quem matais
/ para que matais rezando?"; "...não as ergueis para
Deus / erguei-las para matar"; "E quando os olhos
cerrais / toda enlevada na fé / cerram-se os de quem vos
vê, para nunca verem mais“. De notar que o verbo
matar,
que aparece oito vezes no texto, é sempre tomado no
sentido de seduzir sem corresponder à sedução, prender
sem ser presa, o que corresponde a um conceito de mulher
intangível e inatingível, que vem já da poesia
trovadoresca (dos cantares de amor) e da poesia
palaciana (do Cancioneiro Geral).
Para simbolizar a oração e a causa da morte aparece a
metonímia: "se nua trazeis contas. na outra trazeis
espada”. Surge, igualmente, várias vezes, a inversão da
ordem das palavras (hipérbato): "com mãos a matar tao
prontas'.', "se dizeis que encomendando os que matastes
andais”.
3. São notórias neste poema as marcas de um certo estilo
engenhoso, tão frequente nas redondilhas, o que era já
notado nos poemas do Cancioneiro Geral. Nota-se isto
sobretudo na frequência de trocadilhos. Este exercício
de engenho, que viria a atingir o seu auge no período
Barroco, é um malabarismo vocabular em que a palavra
vale como objeto e não apenas como portador de um
significado, isto é, neste jogo vocabular, o
significante é tao importante como o significado.
Note-se, porém, que a imagística deste estilo engenhoso,
como nota A. J. Saraiva, pertence quase toda ao
reportório tradicional. As imagens estão já "desgastadas
pelo uso, que as reduziu, afinal, a um sistema de
símbolos“. Assim, o sentido conotativo da palavra
matar
(conquistar, perder de amor) vem já dos cantares de amor
e, sobretudo, da poesia palaciana do Cancioneiro
Geral, como já foi referido.
Este estilo engenhoso, palaciano, coloca Camões na linha
da tradição lírica medieval, a contrastar com o seu
próprio estilo clássico.
BORREGANA, António Afonso (1986). Textos em análise, c/
adaptações.