O Modernismo é um movimento estético, em que a literatura surge associada às
artes plásticas e por elas influenciada, sob o influxo da arte e da literatura
mais avançadas na Europa.
Fernando Pessoa: Almada Negreiros.
Pintura, 1964.
Na génese deste movimento podem descobrir-se também precedentes na própria
literatura portuguesa, sobretudo na geração de Eça e de Antero de Quental, em
Eugénio de Castro, em Camilo Pessanha e em Cesário Verde.
O Modernismo surgiu como imperativo de levar a poesia a trilhar no nosso País os
caminhos usados e originais que já estava seguindo no resto da Europa. Já antes
o simbolismo e o saudosismo tentaram insuflar sangue novo na nossa literatura,
mas o primeiro depressaenveredou por um
neoclassicismo barroco, pós-simbolista e decadentista
e o segundo
continuou a
tendo originado divergências no seu próprio seio. António Sérgio, por exemplo,
acusou Teixeira de Pascoais dum pensamento demasiado utópico e passadista,
fechado num lusitanismo xenófobo, provinciano, incompatível com o moderno
espírito europeu. O idealismo de Pascoais desprezava o progresso técnico e
subestimava as realidades económicas, originando um isolamento sonhador e
paralisante. António Sérgio abandona, pois, o saudosismo e cria, em 1921, a
"Seara Nova", que pretendia aproximar a arte literária das realidades sociais.
O inconformismo com esta situação manifestou-se também em Fernando Pessoa e
Mário de Sá-Carneiro, colaboradores de "A Águia", órgão oficial do Saudosismo. Mas o
afastamento definitivo de Pessoa surgiu com a recusa, ou pelo menos o
desinteresse do dirigente de "A Águia", em publicar o seu drama estático "O
Marinheiro". Para além do mais, Pessoa já se sentia diferente dos seus
companheiros, diverso, outro, afirmando-se e causando estranheza pela
modernidade e originalidade do seu estilo. A poesia anti-saudosista e
antimetafísica de Alberto Caeiro não seriam uma reacção em 2° grau, mais
indirecta, mais subtil e mais profunda à escola de Pascoais?
Após a dissidência, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro vão liderar um grupo
modernista que, em fins de Março de 1915, irá dar ao prelo a revista ORPHEU.
A revista, propriedade de Orpheu, Lda., apresentava-se como uma revista
trimestral de literatura. Os seus directores eram o poeta português Luís de Montalvor e o brasileiro Ronald de Carvalho, sendo o jovem António Ferro o seu
editor. Colaboraram ainda no n° 1 os poetas Mário de Sá- Carneiro, Fernando
Pessoa, Alfredo Pedro Guisado e Armando Côrtes-Rodrigues, bem como os pintores
José Pacheco (autor da capa) e José de Almada Negreiros (com textos em prosa).
Eram todos jovens e um pouco "malucos"...
Orpheu deve considerar-se como uma prática de ruptura de vanguarda e como uma
plataforma de encontro entre o passado e o futuro. Com efeito, em Orpheu há a
confluência de vários “ismos”:
* Simbolismo (F. Pessoa, Luís de Montalvor, Ronald de Carvalho, Eduardo
Guimarães);
* Decadentismo (Sá-Carneiro, Albino de Meneses, Castelo de Morais);
* Paulismo (F. Pessoa, Sá-Carneiro, Pedro Guisado, Cortes-Rodrigues, Raul Leal,
Ângelo de Lima);
* Interseccionismo (F. Pessoa, Sá-Carneiro);
* Futurismo (Álvaro de Campos, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Amadeu de
Sousa-Cardoso).
Os artistas pretendiam reagir contra o cepticismo total que reinava na sociedade
portuguesa (não esquecer que se vivia um momento de crise a seguir à instauração
da República, que iria culminar com a entrada de Portugal na primeira guerra
mundial), pela agressão, pelo sarcasmo, pela excentricidade, pela sondagem das
regiões inexploradas e indefinidas do subconsciente, ou então pela entrega às
vertigens das sensações, à grandeza inumana das máquinas, das técnicas, da vida
gregária das cidades. Os artistas órficos pretendiam ainda "criar uma arte
cosmopolita no tempo e no espaço", numa altura em que "todos os países existem
dentro de cada um" banidas que eram as barreiras da distância, pelo progresso
dos transportes, da técnica, da ciência. A arte moderna deveria ser o
maximamente desnacionalizada, acumulando dentro de si todas as partes do mundo:
o misticismo asiático, o primitivismo africano, o cosmopolitismo das Américas, o
exotismo da Oceânia e o masoquismo decadente da Europa. A arte deveria ser,
pois, a síntese de tudo e cada artista deveria saber multiplicar a sua
personalidade por todas as outras personalidades (sensacionismo, interseccionismo, heteronímia...).
Desde a capa (de José Pacheco) ao conteúdo, a revista Orpheu escandalizou o
público e os críticos da época, que acusaram os poetas órficos de alienados e
mistificadores a invadir as letras nacionais. A análise de alguns títulos de
órgãos de informação da época é disso exemplo: "Literatura de manicónio ", "Os
bardos de Orpheu são doidos com juízo", " O suposto crime do Orpheu ", "Orpheu
nos Infernos", " Rilhafolescamente " - Rilhafoles era o nome de um
hospital de doidos, em Lisboa. Elucidativo é também o comentário do
semanário "O Século Cómico", no seu número de 8 de Abril de 1915: "Não
podemos hoje dar, com o desenvolvimento que desejávamos, notícia do
aparecimento da
publicação trimestral Orpheu, cujo primeiro número temos
à vista. Fica para o próximo número, se alguns dos nossos
redactores encarregados das críticasliterárias
conseguirem ler o folheto até ao fim sem percalço de maior. Quatro dos nossos
companheiros de trabalho, ao tentarem a empresa, recolheram ao hospital com
terríveis indícios de alienação; dois outros faleceram de apoplexia fulminante
às primeiras linhas; mais três tiveram tal destempero intestinal que de momento
a momento correm a despejar-se. Veremos se algum insiste e é capaz de arcar com
a tarefa. Também, se der tão grande prova de resistência, bem se pode dizer que
comete maior prova do que se atravessasse os Dardanelos!".
Apesar de não levarem muito a sério a mocidade irreverente dos poetas órficos,
os críticos não deixaram de ficar chocados com essa revolta petulante contra as
escolas tradicionais (o academismo, o nacionalismo e o passadismo saudosista). É
claro que este azedume dos "senhores das letras" acabou até por agradar aos
novos poetas, pois publicitou as suas produções e os seus nomes.
Depois do impacto causado pelo primeiro número de Orpheu seguiu-se, em 26 de
Junho de 1915, um segundo número, ainda com António Ferro como editor, mas agora
já não sob a direcção de Luís de Montalvor (para Portugal) e de Ronald de
Carvalho (para o Brasil), mas a de Sá-Carneiro que, pouco depois (26 de Abril de
1926), se suicidaria em Paris. A par dos Poemas sem Suporte, de Sá-Carneiro,
Fernando Pessoa-ipse apresentava-se pela primeira vez com Chuva Oblíqua, o poema-manifesto do interseccionismo.
Entretanto, o seu alter ego Álvaro de Campos reincidia, agora com Ode Marítima,
hoje um clássico da literatura portuguesa, mas que naquele tempo fez redobrar o
escândalo da Ode Triunfal, inserta no primeiro número da revista.
Colaboraram também Luís de Montalvor, além do brasileiro Eduardo Guimaraens e
descobriram-se novas formas de escandalizar os burgueses: os desenhos e colagens
futuristas de Guilherme Santa-Rita, mais conhecido por Santa-Rita Pintor ou pelo
Santa-Rita Pobre, e as colaborações "loucas" de Ângelo de Lima (um verdadeiro
internado do manicómio de Rilhafoles) e de Violante de Cysneiros (pseudónimo de
Côrtes-Rodrigues).
A morte trágica de Sá-Carneiro e dificuldades de ordem financeira impediram a
publicação de outros números de Orpheu. O terceiro estava pronto em 1916, mas
não chegou a sair (foi, aliás, recente e postumamente editado pela Ed. Nova
Renascença, em edição fac-similada, com um prefácio de José Augusto Seabra e
datado de 13 de Outubro de 1983). Além disso, a atenção da opinião pública
começou a concentrar-se na política nacional e nos cabeçalhos e participação dos
portugueses na 1.ª guerra mundial, deixando de se preocupar com "futilidades" e
"excentricidades". No entanto, a estética modernista não se deu por vencida,
continuando a manifestar-se teimosamente em novas revistas, de vida mais ou
menos efémera: Centauro (1916); Exílio (1916); Portugal Futurista (1917);
Contemporânea (1922-26); Ressurreição; Athena (1924- 1925).
Bibliografia consultada:
• Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. 2,
Ed.Pax.
• Coelho, Jacinto do Prado, Diversidade e Unidade em F. Pessoa. Ed.
Verbo.
• Coelho, Jacinto do Prado, Dicionário da Literatura Portuguesa.
Figueirinhas, Porto, 1990.
• Quadros, António, O Primeiro Modernismo Português. Publicações
Europa-América.
• Orpheu, vol. I, Edições Ática, Lisboa, Dez. 1984.
• Orpheu, vol. II . Edições Ática, Lisboa,1986.