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Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

XXXIV

 

Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa...


Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...


Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixava de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.


Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos", in Poesia,
Lisboa, Assírio & Alvim Ed., 2001

 

Análise / Leitura orientada

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.
1. Explicite as caraterísticas do "eu" reveladas na primeira estrofe.

2. Analise os sentimentos expressos no verso: "E então desagrado-me, e incomodo-me" (v. 8)
3. Atente no verso: "Que me importa a mim isso? (v. 14). Explique o seu significado no contexto em que surge.
4. Refira os efeitos produzidos pelos traços de discurso oral presentes no poema.
5. "E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu." (v. 20)

Comente o sentido deste verso enquanto conclusão do texto.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. Analisada a primeira estrofe, podemos chegar à conclusão de que o "eu" se carateriza como alguém que se assume contra o pensamento porque pensar é estar doente dos olhos, é estar cego, é deixar de "ver as árvores e as plantas" (cf. v. 16), é deixar de ver a Terra (cf. v. 17), razão por que preconiza, num outro poema, um programa de conduta de vida que radica neste princípio essencial: "O essencial é saber ver / saber ver sem estar a pensar". Mas nesta primeira estrofe, o sujeito poético também se quer distanciar, criticando e rindo, ironicamente, da "gente que pensa" - "... me ponho a rir às vezes, sozinho, / Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa / Que tem que ver com haver gente que pensa... (cf. vv. 2-4). Daí que ache o acto de não pensar tão natural que chega a nutrir um sentimento de repulsa do absurdo que é  existeirem pessoas que pensem, ainda que  ele próprio, mais à frente, na composição, se revolte contra si mesmo porque também ele se vê a perguntar-se sobre as cousas, deixando-se, pois, cair na tentação do pensamento (o interrogar-se é autoinquirir-se; logo, é entregar-se a uma atividade intelectual, reflexiva, pensante....).

 

 

2. O verso "E então desagrado-me, e incomodo-me" exprime o descontentamento do "eu" consigo mesmo por se ter surpreendido a perguntar-se "cousas", isto é, a pensar, o que significa ter-se traído, por momentos, a si próprio, caindo no erro que critica nos outros, nomeadamente os os poetas e filósofos que procuram um sentido oculto "para além" das coisas. Mesmo que momentânea, esta contradição provoca-lhe, ao aperceber-se dela, um desagrado e um desconforto quase físicos ("Como se desse por mim com um pé dormente..."  - v. 9).
 

3. A frase interrogativa "Que me importa isso a mim?", encerrando o discurso sobre a hipótese inverificável de as coisas terem pensamento, marca a distância do sujeito poético em relação esse tipo de problemática. Depois de negar categoricamente essa hipótese ("Nada pensa nada." - v. 11), e de manifestar a sua indiferença perante a eventualidade de a "terra" pensar ("Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem? / Se ela a tiver, que tenha..." - vv. 12-13), o sujeito poético, através desta última interrogação, prescinde de todas as interrogações, à imagem da própria natureza.

 

4. Pelas suas caraterísticas oralizantes - vocabulário simples e corrente, repetições, frases curtas, frases interrogativas, frases reticentes, recurso a perguntas e respostas - o discurso poético aproxima-se da fluidez coloquial da fala, recriando o aspeto de uma linguagem despojada de artifícios, coerente com a simplicidade comunicativa das ideias que apresenta.

 

5. O verso "E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu." surge formulado como a conclusão do poema e, em particular, da argumentação iniciada no verso 15, relativa ao que o sujeito poético perderia se "pensasse" e ao que ganha não pensando. Assim, pensar significaria deixar de ver a realidade para "ver só" as construções abstratas dos "pensamentos", que se interporiam, como uma cortina, entre o "eu" e "as árvores", "as plantas" e a "Terra", deixando-o "às escuras". Pelo contrário, não pensando, nada se interpõe entre o seu olhar e a realidade das coisas do mundo. Em suma, não pensar é libertar de subjetividade a visão do real, é restituir ao olhar a capacidade de ver o mundo na sua plenitude, é sentir-se dono da "Terra" e do "Céu".

 

 

 

Nota: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

Escrito e publicado, com adaptações, por

Joaquim Matias da Silva

 

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Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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