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ULISSES

- Comentário ao poema -

 

Fernando Pessoa, num artigo publicado no “Jornal do Comércio e das Colónias”, afirmou: “O mundo conduz-se por mentiras. Quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá de mentir-lhe deliberadamente e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se comprometer da verdade da mentira que criou”.

Ora, esta afirmação vem muito a propósito da mensagem poética que o poema Ulisses nos transmite. Com efeito, Ulisses foi uma mentira – “Foi por não ser existindo. / Sem existir…/ Por não ter vindo…”. Porém, essa mentira foi vivida como se verdade fosse e isso chegou para se fundar um país – “…foi vindo/E nos criou”.

 

O mesmo acontece com o mito que é “o nada que é tudo”.

 

 

Na verdade, pela sua natureza (espiritual, fruto do sonho) o mito é o nada, porque não é uma realidade palpável. No entanto, é tudo, dado que ajuda a esclarecer a Verdade, uma vez revelado. Tem, portanto um carácter antitético – ora oculta, ora revela a verdade ou aquilo que se pode transformar em verdade. Tal como o sol, que é um enigma, pois rompe as trevas, revelando-nos as coisas, mas que, no fundo, não deixa de ser um acontecimento banalíssimo, como que um nada, também o mito é brilhante, é luz, é inspiração, sem deixar, todavia, de ser mudo, enigmático, exigindo ser decifrado – o mito é, assim, a luz que ilumina o caminho, mas é ao homem que compete percorrer esse caminho pelos seus próprios pés. Metaforicamente, o mito identifica-se com o corpo de Deus, que está morto (Deus ganhou a natureza humana, através de Cristo, mas perdeu-a com a morte desse mesmo Cristo), logo, não é nada, mas continua vivo – e é tudo – para todos aqueles que acreditam nele, desnudando-se, ou seja, revelando-se, até porque Cristo foi Revelação, ao indicar-nos o rumo a seguir.

Ulisses surge-nos como um mito ligado ao mar e às viagens, tendo passado do nada (mera ficção) a tudo, dando origem a uma cidade (Olissipo) e fazendo um povo transcender-se e erguer um país, país esse que, pela sua origem mitológica é e será gandioso, cabendo-lhe uma missão divina – a construção do V Império.

Herbert James Draper: Ulisses escapa aos encantos das sereias.

Entretanto, a lenda, que é o mesmo que mito, vem do alto dos tempos (está em cima, é de cariz espiritual), escorre (o mesmo é dizer: espalha-se, pois o número de pessoas que nele acredita vai aumentando), entra e fecunda a realidade, dando sentido à vida. Sem o mito (= sonho, esperança) a vida, que nada vale (“Em baixo, a vida, metade /De nada…”), morre (= sem sonhos, a nossa vida não faz sentido, perde toda a graça).

 

Pelo que fica dito, fácil será dividir o poema Ulisses em quatro partes lógicas. A primeira engloba apenas o primeiro verso da composição, constituindo a tese do poema, onde se tenta dar uma definição de mito, cujo carácter antitético é sugerido pelo oxímoro nada/tudo. A segunda parte corresponde aos restantes quatro versos da primeira quintilha, ao longo dos quais o sujeito poético, recorrendo à antítese (“morto”/ “vivo”), à sinestesia e à dupla adjectivação (“brilhante e mudo”, “Vivo e desnudo”) e à metáfora (vv. 2-4), tenta expandir a tese, sobrelevando o carácter paradoxal de mito e evidenciando a ideia de que, pela sua natureza, é difícil proceder à sua definição.

 

A terceira parte é constituída pela segunda quintilha, onde o eu lírico, mediante o recurso ao deíctico/pronome demonstrativo “este” reenvia-nos para o título do poema e para um mito concreto – “Ulisses”. O facto deste herói mitológico não passar de um mito não lhe retira o mérito de estar na origem de Portugal, porque foi o fundador da sua capital (Olissipo = Lisboa). Deitando mão a uma série de paradoxos (“Foi por não ser… / Sem existir nos bastou. / Por não ter vindo foi vindo”), o sujeito poético volta a enfatizar a índole antitética do mito e a reforçar a ideia de que não foi necessário que Ulisses tivesse existido verdadeiramente para levar todo um povo a erguer uma nação.

 

Finalmente, a quarta parte está contida na última quintilha. É a conclusão do poema, em que, através de uma linguagem sensual, própria do acto sexual gerador de vida (“se escorre”, “a entrar na realidade”, “fecundá-la”, “vida”), se sugere a ideia de que a vida sem o mito, sem o sonho, não vale nada, é um zero ou um vazio absoluto.

 

Infere-se, ainda, deste poema que o mito surge associado ao ciclo de vida: nasce, desenvolve-se e morre. Mas a sua morte não é o fim, já que outros mitos vão surgindo em função dos que terminam, até porque o culto de mitos sempre foi uma eterna necessidade na vida das pessoas.

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

Nota: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

 

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