FREI LUÍS DE SOUSA -
ACTO II
CENA XIV
Madalena, Jorge, Romeiro
Jorge
‑ Sois
português?
Romeiro
‑ Como
os melhores, espero em Deus.
Jorge
‑ E
vindes?
Romeiro
‑ Do
Santo Sepulcro de Jesus Cristo.
Jorge
‑ E
visitastes todos os Santos Lugares?
Romeiro
‑ Não
os visitei; morei lá vinte anos compridos.
Madalena
‑
Santa vida levastes, bom romeiro.
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Romeiro
‑
Oxalá!
Padeci muita fome,e não a sofri com
paciência; deram‑me muitos
tratos; e nem sempre
os levei com os olhos n' Aquele que ali tinha
padecido tanto por mim... Queria rezar e meditar
nos
mistérios da Sagrada Paixão que ali se
obrou... e as paixões mundanas, e as lembranças
dos que se chamavam meus segundo a carne,
travavam‑me do coração e do espírito, que os não
deixavam estar com Deus nem naquela terra que é
toda sua. Oh! eu não merecia estar onde estive:
bem vedes que não soube morrer lá.
Jorge
‑ Pois bem: Deus quis trazer‑vos à terra de
vossos pais; e quando for sua vontade, ireis
morrer sossegado nos braços de vossos filhos.
Romeiro
‑ Eu
não tenho filhos, padre.
Jorge
‑ No
seio da vossa família...
Romeiro
‑ A
minha família... já não tenho família.
Madalena
‑
Sempre há parentes, amigos...
Romeiro
‑
Parentes!... os mais chegados, os que eu me importava
achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua
felicidade com ela; hão‑de jurar que me não conhecem.
Madalena
‑
Haverá tão má gente... e tão vil,
que tal faça?
Romeiro
‑
Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder!
Madalena
‑ Não
façais
juízos temerários, bom romeiro.
Romeiro
‑ Não
faço. De parentes, já sei mais do que queria; amigos,
tenho um; com esse, conto.
Jorge
‑ Já
não sois tão infeliz.
Madalena
‑ E o
que eu puder fazer‑vos, todo o amparo e agasalho que
puder dar‑vos, contai comigo, bom velho, e com meu
marido, que há‑de folgar de vos proteger...
Romeiro
‑ Eu
já vos pedi alguma coisa,
senhora?
Madalena
‑ Pois
perdoai, se vos ofendi, amigo.
Romeiro
‑ Não
há ofensa verdadeira senão as que se fazem a Deus.
Pedi‑lhe vós perdão a Ele, que vos não faltará de quê.
Madalena
‑ Não,
irmão, não decerto. E Ele terá compaixão de mim.
Romeiro
‑
Terá...
Jorge
(cortando a conversação)
‑ Bom
velho, dissestes trazer um recado a esta dama: dai‑lho
já, que havereis mister de ir descansar...
Romeiro
(sorrindo amargamente)
‑
Quereis
lembrar‑me que estou abusando da paciência com que
me têm ouvido? Fizestes bem, padre: eu ia‑me
esquecendo... talvez me esquecesse de todo da mensagem a
que vim... estou tão velho e mudado do que fui!
Madalena
‑
Deixai, deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir: dir‑me‑eis
vosso recado quando quiserdes... logo, amanhã...
Romeiro
‑ Hoje
há‑de ser. Há três dias que não durmo nem descanso, nem
pousei esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite,
para chegar aqui hoje, para vos dar meu recado... e
morrer depois... ainda que morresse depois; porque
jurei... faz hoje um ano... quando me libertaram, dei
juramento sobre a pedra santa do Sepulcro de Cristo...
Madalena
‑ Pois
éreis cativo em Jerusalém?
Romeiro
‑ Era;
não vos disse que vivi lá vinte anos?
Madalena
‑ Sim,
mas...
Romeiro
‑ Mas
o juramento que dei foi que, antes de um ano
cumprido,
estaria diante de vós e vos diria da parte de quem me
mandou...
Madalena
(aterrada)
‑
E quem vos mandou, homem?
Romeiro
‑ Um
homem foi, e um honrado homem... a quem unicamente devia
liberdade... a
ninguém mais. Jurei fazer‑lhe a vontade,
e vim.
Madalena
‑ Como
se chama?
Romeiro
‑
O
seu nome, nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no
cativeiro.
Madalena
‑ Mas
enfim, dizei vós...
Romeiro
‑ As
suas palavras, trago‑as escritas no coração com as
lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes
me caíram nestas mãos, que me correram por estas faces.
Ninguém o consolava, senão eu... e Deus! Vede
se me
esqueceriam as suas palavras.
Jorge
‑
Homem, acabai.
Romeiro
‑Agora
acabo; sofrei, que ele também sofreu muito. Aqui estão
as suas palavras: «Ide a D. Madalena de Vilhena, e
dizei‑lhe que um homem que muito bem lhe quis... aqui
está vivo... por seu mal!... e daqui não pôde sair nem
mandar‑lhe novas suas de há vinte anos que o trouxeram
cativo.»
Madalena
(na
maior ansiedade)
‑ Deus
tenha misericórdia de mim! E esse homem, esse homem,
Jesus! esse homem era... esse homem tinha sido...
levaram‑nos aí de donde?... de África?
Romeiro
‑
Levaram.
Madalena
‑
Cativo?...
Romeiro
‑ Sim.
Madalena
‑
Português?... cativo da batalha de?...
Romeiro
‑ De
Alcácer Quibir.
Madalena
(espavorida)
‑ Meu
Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo dos,
meus pés?... Que não caem estas paredes, que me não
sepultam já aqui?
Jorge
‑
Calai‑vos, D. Madalena! A misericórdia de Deus é
infinita; esperai. Eu duvido, eu não creio... estas não
são cousas para se crerem de leve. (reflecte, e logo
como por uma ideia que lhe acudiu de repente) Oh!
Inspiração divina... (chegando ao romeiro).
Conheceis bem esse homem, romeiro, não é assim?
Romeiro
‑ Como
a mim mesmo.
Jorge
‑ Se o
víreis ainda que fora noutros trajos... com menos anos,
pintado, digamos, conhecê‑lo‑eis?
Romeiro
‑ Como
se me visse a mim mesmo num espelho.
Jorge
‑
Procurai nesses retratos, e dizei‑me se algum deles pode
ser.
Romeiro
(sem
procurar, e apontando logo para o retrato de D. João)
‑
É
aquele.
Madalena
(com
um grito espantoso)
‑ Minha filha, minha
filha, minha filha!... (em tom cavo e profundo).
Estou... estás... perdidas, desonradas...
infames!
(com outro grito do coração) Oh! minha filha, minha
filha!... (Foge
espavorida e neste gritar)
Joaquim
Matias da Silva
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