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ANÁLISE DE UM VILANCETE

 

- Descalça vai pera a fonte -

Mote

Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Voltas

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

 

Luís de Camões

 

Notas:  V. 2 - Lianor: Leonor (forma popular, por dissimilação); V. 3 -  fermosa: formosa (forma popular, por dissimilação); V. 4 - pote: bilha de barro; V. 6  - cinta: faixa que envolvia a cintura; V. 6 - escarlata: tecido fino de lã de cor vermelha; V. 7 - sainho: diminutivo de saia, espécie de capa que se vestia por cima da camisa; V. 7 - chamalote: tecido de pelo ou de lã, por vezes entretecido com seda;  V. 8 - vasquinha de cote: saia com muitas pregas, de uso diário; V. 12 - o trançado: rede destinada a segurar o cabelo; VV. 11-13 (ordem direta): a touca descobre a garganta, o trançado, fita de cor de encarnado, (descobre) cabelos d' ouro.
 

 

 

 

 

 

QUESTIONÁRIO

1. Qual o assunto do poema e quais os processos estilísticos utilizados pelo poeta no seu desenvolvimento.


2. Poderá o tema deste vilancete ligar-se à poesia trovadoresca? Justifique a resposta.


3. Com base no texto, caraterize a mulher e o amor visionados pelo poeta.


4. Descreva a estrutura formal do poema.


RESPOSTAS:


1. O eu da enunciação traça o retrato de Leanor quando esta vai buscar água à fonte. O assunto desenvolve-se, pois, tendo em vista evidenciar a beleza e a graciosidade de Leanor. O sujeito poético consegue fazer ressaltar a graça e a beleza da rapariga servindo-se: da expressividade do substantivo "
graça", dos adjectivos "linda", "branca", "formosa"; da expressividade do verbo "chover" ("chove nela graça tanta"), usado aqui com valor transitivo e carregado de sentido hiperbólico (a graça era nela tão evidente e tão abundante como a chuva); das metáforas "mãos de prata", "cabelos de ouro", fazendo ressaltar a brancura das mãos e o louro dos cabelos, caraterísticas do tipo de mulher clássica; da expressividade dos diminutivos "sainho", "vasquinha", sugerindo a ideia de graciosidade e de simpatia; das orações consecutivas ("que o mundo espanta", "que dá graça à formusura"); das hipérboles contidas nas duas orações consecutivas atrás citadas e na expressão comparativa "mais branca que a neve pura"; das peças de vestuário e dos objetos que transporta, em si graciosos, pretendendo o eu lírico transferir essa graciosidade para Leanor, que traz uma cinta escarlate, um sainho de chamalote, uma vasquinha de cote, uma touca e uma fita vermelha nas tranças e que leva o pote à cabeça e o testo nas mãos.


2. O tema do vilancete, os elementos bucólicos nele presentes (a fonte, o caminho cheio de verdura), bem como a conceção da mulher e do amor colocam este poema de Camões na linha da poesia trovadoresca medieval, o que é também confirmado pela métrica dos versos - redondilha maior (medida velha).


3. Neste retrato idealizado de Leanor, em que, mais que a beleza física, se visiona a graça e a beleza espiritual, paira a conceção platónica do amor, assim como um tipo de mulher petrarquista.


4. Trata-se de um vilancete composto por um mote de três versos e por duas voltas(glosas) de sete versos. O último verso do mote repete-se, também como último, nas duas voltas. Os versos são de sete sílabas, isto é, versos de redondilha maior (Des-calça-vai-pa-raa-fon). Trata-se portanto da "medida velha", de acordo com as caraterísticas tradicionais do poema. A rima é emparelhada e interpolada, como se pode verificar no esquema rimático: ABB —CDDCCBB.
 

BORREGANA, António Afonso, Textos em análise I, c/ adaptações.


OUTRAS LINHAS DE LEITURA:

 

1. ATENTE:


a) Nas palavras sugestivas de cor, em que dominam o vermelho, o branco e o ouro, simbolizando, respetivamente, a sensualidade, a pureza e a perfeição.


b) No retrato parado, em que as únicas formas verbais que sugerem movimento são
leva e vai, este no mote e repetido no último verso de cada volta, como era da praxe. Se quisermos encontrar mais dinamismo, teremos de ir buscá-lo ao ritmo da própria redondilha que se apresenta aqui de acentuação variada e incerta.


c) Na função informativa da linguagem com pormenores de descrição visual, em que se diz como se apresenta a figura retratada e quais os objetos que transporta (
descalça, o pote na cabeça, o testo nas mãos, uma cinta escarlata, um sainho de chamalote, uma vasquinha de cote e uma touca), para nos últimos versos (15-16) referir em posição simétrica, como remate, a sua graça espiritual.

 

d) Na idealização petrarquista e estereotipada da mulher, pois aqui os cabelos também são da cor do ouro e as mãos da cor da prata.


e) Na graciosidade transmitida ao retrato quer pela comparação (
mais branca que a neve pura), quer pelas orações consecutivas com sentido hiperbólico (tão linda que o mundo espanta, graça tanta que dá graça à fermosura), quer ainda pelos diminutivos (sainho de chamalote, vasquinha de cote) e pelas metáforas (mãos de prata, cabelos de ouro).

 

2. CLASSIFICAÇÃO DA COMPOSIÇÃO E ESQUEMA RIMÁTICO: estamos perante um vilancete em redondilha maior, com mote de três versos de um cantar velho e duas voltas de sete, em que o último verso da cabeça rima com o primeiro da cauda, segundo o esquema ABB / cddccbb, isto é, há um verso solto, seguido de rima emparelhada no mote, enquanto nas voltas a rima é interpolada e emparelhada, sempre consoante e aguda ou feminina, ou não fosse a donzela o motivo de atração em toda a composição.

 

BRAGANÇA, António (1981). Textos e comentários, c/ adaptações.
 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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