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D’ OS LUSÍADAS À
MENSAGEM
Os poemas de Camões e de Fernando
Pessoa sobre Portugal situam-se respectivamente no
início e na fase terminal do longo processo de
dissolução do império. Daí notáveis diferenças, a par de
afinidades sensíveis. Ao gizar a Mensagem, não só
Fernando Pessoa tinha Os Lusíadas no âmbito das
suas referências culturais como nele desembocavam os
rios subterrâneos duma Weltanschauung e duma mitologia
colectivas vindas de Camões e do humanismo quinhentista.
Ambos se mostram impregnados duma
concepção mística e missionária da História portuguesa
(talvez seja melhor dizer missionante, para evitar
equívocos). D. Sebastião, n' Os Lusíadas, é um
enviado de Deus incumbido de alargar a Cristandade:
«Vós, ó novo temor da Maura lança, / Maravilha fatal da
nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
/ Para do mundo a Deus dar parte grande» (I, 6). Na
Mensagem, Portugal é um instrumento de Deus, a
História pátria obedece a um plano oculto, os heróis
cumprem um destino que os ultrapassa: «Fosse Acaso, ou
Vontade, ou Temporal / A mão que ergueu o facho que
luziu, / Foi Deus a alma e o corpo de Portugal / Da mão
que o conduziu».
Se, n' Os Lusíadas, o nosso
país é «qual cume da cabeça / Da Europa», na Mensagem,
em descrição semelhante, Portugal é o seu rosto, e a
diferença reside na personificação da Europa, figura
feminina, de «olhos negros», «românticos cabelos», o
rosto apoiado na mão direita, atitude estática,
pensativa. Haverá aqui sugestões do célebre soneto de
Unamuno dedicado a Portugal, aquele que começa «Del
Atlántico mar en las orillas»; também o Portugal de
Unamuno está simbolizado numa mulher que, descalça, na
praia, em frente do Atlântico, olha absorta em nostalgia
e esperança:
Dice de luengas tierras y de azares
mientras ella sus piés en las espumas
bañando sueña en el fatal imperio,
que se le húndió en los tenebrosos mares;
y mira como entre agoreras brumas
se alza Don Sebastian, rey del misterio [1].
Tanto Camões como Pessoa, cantores
da pátria, são poetas da ausência. Poetas do que foi ou
do que poderá vir a ser. Dum amor que ou se refugia na
memória ou, revigorado, se traduz na vibração de um
apelo. Mas as situações divergem, um intervalo
multissecular tinha de separá-los. No Camões épico
predomina o elemento viril - a viagem, a aventura, o
risco. Tradicionalmente, a mulher é a que fica,
esperando, imóvel, na felicidade e no sonho do regresso:
como Pessoa e as figuras em que se desdobra, de olhos
fitos no indefinido. Homem de acção, e não só de
inteligência, Camões ainda conheceu o império no
concreto da sua grandeza e das suas misérias, era-lhe
fácil ainda ter esperança, o D. Sebastião a quem se
dirige é um jovem de carne e osso, vale a pena
mostrar-se, exibir os seus préstimos, para que o Rei o
distinga, confie nele, se lance na conquista do Norte de
África levando-o consigo. Outro império terreno ainda
parece possível, «como a pressaga mente vaticina», o
próprio Velho do Restelo sanciona a aventura, e Camões
prepara-se para cantar a nova empresa.
O D. Sebastião da Mensagem,
elaborado longamente pelo sebastianismo e pela
humilhação, esse é o Encoberto, o Desejado, uma sombra,
um mito. Pessoa sobrevive na aridez dos «dias vácuos»,
já lhe faltam razões para acreditar, o seu desejo está
no limite, calcinado pela espera de quatro séculos.
Refaz o trajecto camoniano da evocação para a invocação.
Mas, perante o Rei ausente, que talvez nunca mais
regresse da sua ilha encantada, é como se fosse o menino
órfão, abandonado, que, na desolação da sua própria
intimidade, dirige à mãe uma derradeira súplica: «Screvo
meu livro à beira-mágoa. / Meu coração não tem que ter.
// Ah, quanto quererás, voltando, / Fazer minha
esperança amor? / Da névoa e da saudade quando? /
Quando, meu Sonho e meu Senhor?» (Terceiro d' «Os
Avisos»).
O seu enorme anseio tornou-se
insuportável, só pela palavra poética ilude o silêncio,
o vazio. Em Camões, põem-se no mesmo plano a memória e a
esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança
se transferiu para o sonho, a utopia, e daí uma
concepção diferente de heroísmo. Pessoa identifica-se
com os heróis da Mensagem, ou neles se desdobra,
num processo lírico-dramático. O amor da pátria
converte-se numa atitude metafísica definível pela
decepção do real, pelo anelo absoluto, por uma loucura
consciente, pela busca do que não existe, pela demanda
que só tem finalidade em si própria, porque atingir é
estagnar, ser vencido. Esta, na Mensagem, a lição
do Encoberto. No fim de contas, a Mensagem, onde
os elementos épicos surgem filtrados, transfigurados,
pela contemplação lírica, não se situa muito longe do
«clima» d' O Marinheiro, «drama estático», onde a
Segunda Veladora nos fala do marinheiro que se perdeu
numa ilha remota: «Como ele não tinha meio de voltar à
pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a
sonhar uma pátria que nunca tivesse tido». Revivendo a
fé no Quinto Império, Pessoa inventou uma razão de ser,
um destino, fugindo à angústia dum quotidiano absurdo,
genialmente expresso por ele e por Álvaro de Campos.
Se continuássemos à procura de
pontos de contacto entre Camões e Fernando Pessoa, ainda
poderíamos registar a sua capacidade e preocupação
arquitectónicas. Jorge de Sena valorizou «o
extraordinário equilíbrio construtivo que, em Os
Lusíadas, encontramos, seja qual for o aspecto por
que examinemos o poema» [2]. Por seu turno, os textos
que compõem a Mensagem distribuem-se em grupos e
subgrupos, obedecendo a um plano cuidadosamente
estabelecido. Aqui a diferença está no facto de Os
Lusíadas serem, pela forma, que não só pela
substância, uma epopeia clássica, narração onde se
enlaçam a viagem de Vasco da Gama, a comédia dos deuses
e a História de Portugal, mediante alternâncias e
discursos dentro do discurso, uns retrospectivos, outros
prospectivos, enquanto a Mensagem integra, como
se sabe, 44 poesias breves, datadas de várias épocas e
arrumadas em três partes principais: «Brasão», «Mar
Português» e «O Encoberto». A primeira e a terceira
partes ainda estão subdivididas: a primeira em «Os
Campos», «Os Castelos», «As Quinas», «A Coroa» e «O
Timbre», reproduzindo assim os elementos da bandeira
nacional; a terceira os «Símbolos», «Os Avisos» e «Os
Tempos». Da face interna, embelemática, desta
arquitectura, aliás de sentido ocultista, como neste
Congresso mostrou Helder Macedo, infere-se um carácter
menos narrativo e mais interpretativo, mais cerebral,
que d' Os Lusíadas.
É certo que já no poema camoniano
há uma tendência abstractizante, livresca, assinalada
por António José Saraiva quando escreve que nele a ideia
de pátria é «uma noção abstracta, fora da história», e
os heróis históricos se reduzem a «puras abstracções» ou
«medalhões convencionais». «Precisamos de subir ao
Olimpo - observa A. J. Saraiva - para encontrar corpos
vivos e reais banhados pela luz e capazes de movimento:
no mundo histórico há somente sombras e abstracções»[3].
Mesmo descontando uma ponta de exagero, teremos aqui
outra afinidade entre Camões e Pessoa. Este, porém, leva
o cerebralismo muito mais longe. Possui aquilo a que
Cesare Pavese chamava «o senso heráldico», isto é, a
faculdade de ver símbolos em tudo. Os heróis da galeria
da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos,
elos duma trajectória cujo sentido Pessoa se propõe
desvelar até onde o permite o olhar visionário. O
assunto da Mensagem não são os portugueses ou
eventos concretos, mas a essência de Portugal e a sua
missão por cumprir. Em fragmento recolhido nas
Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias,
Pessoa censurava a Os Lusíadas a falta dum
pensamento. Pois na Mensagem é a redução a um
pensamento que descarna, espectraliza as personagens da
História nacional.
Tanto Camões como Pessoa usam o
processo da descrição sucessiva, fragmentária, de
figuras-padrão. Nos discursos de Vasco da Gama esta
técnica verifica-se quer na «explicação» das bandeiras
perante o Catual quer no relato da História de Portugal
destinado ao Rei de Melinde. Os retratos (por vezes
auto-retratos) morais da Mensagem filiam-se no
epigrama ou inscrição tumular dos clássicos (que Pessoa,
aliás, cultivou nas Inscriptions). Observemos, por
exemplo, a figura de Viriato no poema camoniano: «Este
que vês, pastor já foi de gado; / Viriato sabemos que se
chama, / Destro na lança mais que no cajado; / Injuriada
tem de Roma a fama, / Vencedor invencível, afamado: /
Não têm com ele, não, nem ter puderam / O primor que com
Pirro já tiveram» (VIII, 6). E ponhamos, em confronto, a
composição intitulada «Viriato» na Mensagem:
«Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.
Nação porque reincarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste -
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.»
Em Camões, temos tão-só a
descrição laudatória; em Pessoa, Viriato não é já um
herói confinado no seu tempo, encarna um momento da vida
de uma nação, o momento da gestação latente; prefigura o
que havia de vir, é o sinal dum plano que tinha de
cumprir-se. O indivíduo apaga-se em favor do ente
metafísico chamado Portugal. Os elementos descritivos e
narrativos ficam obliterados.
Algo semelhante ocorre no
tratamento doutra personagem: o Rei Dom Dinis. Camões
narra, em três oitavas, o que nós hoje aprendemos na
escola: o seu reinado foi pacífico e próspero, fundou a
Universidade, que depois transferiu para Coimbra,
promulgou novas leis, reformou o país «Com edifícios
grandes e altos muros» (III, 96-98). Falta qualquer
alusão a ter mandado semear o pinhal de Leiria. Pelo
contrário, na Mensagem é este o facto posto em
relevo pelo seu valor simbólico: Dom Dinis surge como
«plantador de naus a haver»; encarna outro momento da
história secreta de Portugal, é também o instrumento
duma vontade transcendente, prepara de longe o Império,
ouve, de noite, enquanto escreve um cantar, o «o rumor
dos pinhais que, como um trigo / De Império, ondulam sem
se poder ver».
Sem dúvida, na segunda parte da
Mensagem, «Mar Português», perpassa um sopro épico,
exalta-se o esforço heróico dos Portugueses no domínio
dos mares, Pessoa dá, por vezes, a réplica a Os
Lusíadas. «O Mostrengo», do mesmo modo que o
Adamastor, opõe à hostilidade bravia da Natureza a
energia indómita dos Portugueses: «Sou um povo que quer
o mar que é teu» - diz ao Mostrengo o homem do leme. Na
Mensagem retoma-se, embora em diferente registo,
o tópico da vantagem que levam os Portugueses aos
navegadores da Antiguidade: «Que o mar com fim será
grego ou romano; / O mar sem fim é português». E, como
n' Os Lusíadas, não se esconde que o reverso da
vitória são as lágrimas: a épica integra em claro-escuro
a história trágico-marítima: a Mensagem é também
um livro-síntese: «Ó mar salgado, quanto do teu sal /
São lágrimas de Portugal!»
Mas a perspectiva mudou. Austero,
absorto, Pessoa não canta a expansão terrena, menos
ainda a guerra contra os Infiéis. Não é católica
apostólica romana a sua inspiração. O emprego do
singular Deus, com maiúscula, imposto pela matéria da
obra, não vale mais, como prova de convicção pessoal,
que o emprego do plural deuses em Ricardo Reis. A
atitude típica dos heróis da Mensagem é contemplativa e
expectante: olham o indefinido, concentram-se na febre
do além que o poeta encarna nos versos admiráveis de «A
Noite»: «Com fixos olhos rasos de ânsia / Fitando a
proibida azul distância». Depressa esta atitude
significa uma ânsia metafísica, a busca duma Índia que
não há. A primeira grande missão cometida por Deus a
Portugal, desvendar o mundo, chegou ao seu termo:
«Cumpriu-se o mar, e o Império se desfez» - diz Pessoa
em «O Infante». Então qual o destino nacional que vem
anunciar? Que sentido tem o verso «Senhor, falta
cumprir-se Portugal»? A inspiração da Mensagem,
como foi lembrado, é ocultista, e o Império entrevisto
no futuro uma aventura do espírito, viagem sem
fronteiras ou limitações movida pelo amor do diverso e
uma constante inquietação. Quando muito (a fala sibilina
deixa supô-lo) um império da língua portuguesa, superior
por natureza ao império terreno, «obscuro e carnal
anterremedo» que o tempo destruiu.
Na terceira parte do livro, o lema
«Pax in excelsis» e a despedida, «Valete, Fratres»,
sugerem um projecto de fraternidade universal entre os
homens. Talvez o que se aponta seja, na verdade, a
utopia, e por isso o elogio do herói, ao contrário do
que sucede n' Os Lusíadas, redunda no elogio da
«loucura», - essa loucura de sinal positivo sem a qual o
homem não passa de «besta sadia», essa loucura que nos
salva da «metade de nada» em que viver é morrer.
Em contraste com o realismo d'
Os Lusíadas (ou do que realista em Camões se
pretende), a Mensagem reage pela altiva rejeição
a um «real» oco, absurdo, intolerável, propondo-nos em
seu lugar a única coisa que vale a pena: o imaginário.
Quem não soube - ou não quis - entender a Mensagem
ignorou esta diferença essencial; nem soube captar a
ironia imanente no intertexto pessoano (compare-se o
optimismo voluntário do poema, incluso na profecia,
embora marginada pela dúvida, com o pessimismo total da
«Elegia na Sombra», escrita uns seis meses depois da
publicação do livro, precisamente em 2-VI-1935)4. Uma
vez mais, o poeta se contradisse, ou disse o que estava
latente no não-dito. Resta saber até que ponto o
imaginário é susceptível de transformar o leitor
enquanto homem e «lusíada, coitado», e em que medida o
projecto de Pessoa, vate, cantor de mitos, visava além
do simples, conquanto nobre e apaixonado, divertimento
estético. Porque esta é, em certa perspectiva, a dupla
face de Pessoa, tal como tem ressaltado das comunicações
aqui apresentadas.
NOTAS:
1 - Em Os Poetas
Lusíadas (Porto, 1919, pp. 269-270), Pascoaes
transcreve o soneto, que considera o mais perfeito
retrato da pátria portuguesa.
2 - In A
Estrutura de «Os Lusíadas», Lisboa, 1970, p. 127.
3 - Luís de
Camões, Lisboa, 1959, p. 156.
4 - In Novas
Poesias Inéditas, Lisboa, 1973, pp. 125-131. Como
remate, um «nada vale a pena».
Coelho, Jacinto do Prado,
in ACTAS DO 1º CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS
PESSOANOS, Brasília Editora - Centro de Estudos
Pessoanos, Porto, 1978.
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