Os Lusíadas
propõem-se cantar feitos e sublinhar os exemplos. Mas há aí também um
sentimento, um presságio de decadência. D. Sebastião nascera em 1554 num
contexto de perplexidade nacional, num período de dúvidas, ansiedades, manobras
palacianas, de crise, que iria consumar-se no desastre de Alcácer Quibir, em 4
de Agosto de 1578 ("Há nações para as quais a epopeia é ao mesmo tempo o
epitáfio", afirmava Antero).
N’ Os Lusíadas
apela-se para a continuação da glória cristã e nacional, mas não se explica
quando e onde. Da leitura global do poema, ressalta uma antinomia grandeza /
decadência, um contrapor o passado ilustre ao presente de "austera, apagada e
vil tristeza". Do mesmo modo, na Mensagem (que Fernando Pessoa pensou em
intitular epicamente "Portugal") há uma antinomia passado/presente,
grandeza/declínio, "Mar Português"/ "Nevoeiro", heroísmo pretérito
oposto
à hora presente (que é de apoio: "É a hora!" - Valete, Frates).
O que é certo é que em ambas as obras há heróis que são
glorificados, porque não se deixaram levar pela "vã cobiça", pela "glória de
mandar", pela "Fama", pelo "metal luzente e louro", antes procuraram dilatar a
fé e o império. Ora, esta empresa grandiosa implicou uma entrega total, uma
grande abnegação, que fizeram com que os heróis tivessem de engolir "... o
corrupto mantimento / Temperado com um árduo sofrimento." (Os Lusíadas,
c. VI,97), até porque "Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da
dor." (Mensagem, "Mar Português"). No entanto, "tudo vale a pena", porque
a recompensa está ao alcance de todos os que conseguirem ultrapassar as
limitações da "fraca carne humana", empenhando-se na luta contra esta "austera,
apagada e vil tristeza", em que Portugal se viu envolvido.
Com efeito, é no que toca
ao preço de prémio, à glória alcançada pelo esforço e pela dor, que se devem
comparar Os Lusíadas e a Mensagem. Ambas as obras contêm uma teoria do
heroísmo. Os heróis que Camões canta conquistaram o alto valor por mérito
próprio. Eles tiveram de suportar as incertezas, a expectativa, o mau tempo, o
escorbuto, enfim, a dor. Também na Mensagem, como já foi dito "Quem quer passar além do
Bojador / Tem que passar além da dor". Deus deu ao mar o perigo e o abismo, com
valor de provações, inerentes às quais, contudo, estão as condições de glória, pois
foi nele que "espelhou o céu".
2. Pontos de desencontro:
1. Os deuses de Camões governam os homens. Os "deuses" de
Pessoa também o fazem, mas são mais herméticos e misteriosos, não fazem
concílios, não são "carnais", não dialogam.
2. Outro ponto de
confronto é o tratamento das figuras de Portugal. As estrofes d’ Os Lusíadas
falam de figuras e factos históricos. Os versos da Mensagem volvem em
mito as figuras históricas, levam essas figuras a tomarem-se abstractas,
simbólicas, espectrais. O Conde D. Henrique, por exemplo, que em Camões não é
privilegiado, é, em Fernando Pessoa, exaltado como o pai-agente-histórico, em
que pulsa uma força inconsciente. Ele é o pai histórico e mítico, sendo também
pelo acto histórico criador da nação epicamente celebrado. Por seu lado, D.
Dinis merece a Camões três estrofes, que descrevem o seu reinado de reformas
jurídicas, das letras e dos povoamentos, um reinado sem rasgos espectaculares, embora
sereno e firme na consolidação nacional. Já na Mensagem essa figura
aparece como o intérprete e visionador de um futuro que há-de ser brilhante, é
"o plantador de naus a haver". Finalmente, ao Infante D. Henrique pouco relevo é
dado por Camões. Ao contrário, Pessoa fez dele a figura mais importante da parte
mais marcadamente épica da Mensagem: "Mar Português". O que interessa a
Pessoa não é o Infante em si mesmo, mas o significado da sua obra – ele é o
agente sacralizado de uma missão de descobrir o Mundo, de estreitar os laços
entre os continentes e de criar um mar português.
Os heróis da Mensagem surgem-nos como seres predestinados,
como que sacralizados por Deus para levarem a cabo uma missão divina. É o que se
depreende das palavras constitutivas do seguinte verso do poema «O Infante»:
"Quem te sagrou criou-te português."
A força épica da
Mensagem não resulta, pois, da narração de factos heróicos, nem do confronto com
émulos da Antiguidade; radica, sim, nas fundas pulsões do inconsciente colectivo e
nas predestinações de um Destino histórico. Não aponta para o Passado, como
Camões; aponta para o Futuro, que é promessa, expectativa messiânica,
visionação, espírito da História a cumprir-se. Assim, em Camões, canta-se o Portugal-que-foi; na Mensagem, o Portugal-a-haver. N’ Os Lusíadas, os
deuses olímpicos regem os acidentes e as peripécias do real quotidiano; em
Fernando Pessoa, os deuses são superados pelo Destino, que é força abstracta,
inexorável, que está tanto no longe do mar como perto do herói que ainda se desconhece
("Que ânsia distante perto chora?" - in poema «Nevoeiro»).
3. Camões objectiva as navegações, nomeia as terras, os povos, os portos e
seus itinerários; Fernando Pessoa abstrai das viagens, dos padrões e dos mares a
grande significação do navegar enquanto acto de esforço físico e enquanto
metáfora do espírito rumo ao plano do ideal. A geografia na Mensagem
toma-se mítica, esfíngica e simbólica. Portugal é um país simbólico, em que os dados
geográficos nos aparecem metamorfoseados em valores históricos, em sibilinas insinuações de destino colectivo
e missão. Assim, a matéria da Mensagem não é histórica, factual,
objectivável; não fala dos acontecimentos e dos lugares, mas de uma essência de
Portugal e de uma missão a cumprir-se.
Podemos dizer, em
conclusão, que Os Lusíadas são a mensagem do passado. A Mensagem
é Os Lusíadas do Futuro. Ambas as obras representam as duas faces
espirituais do Portugal criado e do Portugal criador, do acto histórico e do
pensamento do Devir. A celebração, enfim, de que valeu o que se fez pelo ideal
que criou e este vale como eterna busca. Em confronto, um Império do Mundo e um
Império do Espírito, a apologia do Ideal e da sua rota expectante e messiânica,
a materialidade versus espiritualidade.
Camões e Fernando
Pessoa são dois cantores da Pátria. Cada um à sua maneira assume-se como um construtor de epopeias
e de cultura nacional. Ambos estão inseridos na sua época, embora delas dando reflexos
muito diferentemente modelizados. Um encontra-se às portas da
perda da independência; outro, refugiado na pátria dos mitos numa hora de
"nevoeiro" nacional; um, falando da Odisseia e de Ulisses, ser mitológico
que funda Lisboa (Olissipo), a capital do reino; o outro, teorizando o reino do espírito no mito
– o "nada que é tudo".