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POESIA ORTÓNIMA PESSOANA - ALGUMAS LINHAS DE LEITURA
1. TENSÃO
SINCERIDADE/FINGIMENTO
O fingimento como processo de realização (produção)
artística está na base do(a):
- intelectualização
dos sentimentos para elaboração da arte;
- acto poético encarado
apenas como comunicação ou representação;
- fingimento como
elaboração mental dos conceitos que exprimem as emoções ou o que se quer comunicar;
- tradução dos
sentimentos na linguagem do leitor, pois o que se sente é incomunicável;
- despersonalização
do poeta-fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética,
como impõe a
modernidade;
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- construção da
arte pelo recurso à ironia que tudo põe em causa, inclusive a própria
sinceridade.
(Exemplos de poemas:
Autopsicografia; Isto; Tudo o que faço ou medito)
2. CONSCIÊNCIA /
INCONSCIÊNCIA
O desejo de ser inconsciente sem deixar de ter consciência
de que se é inconsciente transporta-nos para dois
tópicos recorrentes na poesia pessoana:
- Ser múltiplo sem
deixar de ser um;
- Capacidade de
despersonalização que permita atingir a finalidade da Arte, isto é, aumentar
a autoconsciência
humana.
(Exemplos
de poemas: Ela canta
pobre Ceifeira; Ó sino da minha aldeia; Abdicação)
3. SENTIR / PENSAR
A dialéctica sentir /pensar, leva
- à
fragmentação do eu na busca da
totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir;
- ao interseccionismo
entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade como tentativa para
encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência.
(Exemplos
de poemas: Ela canta pobre Ceifeira; Ó sino da minha aldeia;
Abdicação; Meu coração é um pórtico partido)
Em Fernando Pessoa observa-se a dicotomia sinceridade / fingimento que se liga
à da consciência / inconsciência e à do sentir / pensar. Há, assim, uma concepção
dinâmica da realidade poética que, pela união de contrários, permite criar
linguagens e realidades em si diferentes da linguagem do artista e da sua vida,
ao mesmo tempo que patrocina ao leitor objectos de identificação e valores que
se universalizam e adquirem intemporalidade. |
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A crítica da sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente neste
movimento de oposições que leva Pessoa a afirmar que "fingir é conhecer-se". O
poeta considera que a criação artística implica a concepção de novas relações
significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido
como acto de fingimento ou de mentira. Artisticamente, considera que a "mentira
é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de
palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para, em linguagem
real, traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento
(que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir), assim nos servimos da
mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que com a verdade,
própria e intransmissível, nunca poderia fazer." (in Livro do Desassossego, de
Bernardo Soares).
A poesia do Ortónimo revela a despersonalização do poeta-fingidor que fala e que
se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. O poeta
recorre à ironia para pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade, a qual,
com o fingimento, possibilita a construção da arte. Fingir é inventar, elaborar
mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou o que se quer comunicar. É isso
que se observa, por exemplo, em Autopsicografia. Neste poema há uma dialéctica
entre o Eu do escritor Fernando Pessoa, inserido num espaço social e quotidiano,
e o Eu poético, personalidade fictícia e criadora, capaz de estabelecer uma
relação mais livre entre o mundo concreto e o mundo possível. Por isso, não tem
de se pedir a sinceridade de sentimentos, mas a criação de uma personalidade
livre nos seus sentimentos e emoções. A produção poética parte da realidade da
dor sentida, mas distancia-se, criando uma dor fingida, graças à interacção
entre a razão e a sensibilidade, que permite a elaboração mental da obra de
arte. A elaboração estética acaba por se construir pela conciliação da oposição
razão/sentimento.
As dialécticas sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sentir/pensar
percebem-se também com nitidez ao recorrer ao Interseccionismo como tentativa
para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. O
Interseccionismo, que surge como uma evolução do Paulismo, apresenta-nos o
entrecruzamento de planos que se cortam: intersecção de sensações ou percepções.
Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas, de realidades
interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das paisagens reais, do
espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços; uma
intersecção da horizontalidade com a verticalidade. No interseccionismo,
encontramos o processo de realizar o Sensacionismo, na medida em que a
intersecção de sensações está em causa e por elas se faz a intersecção da
sensação e do pensamento (Chuva Oblíqua é um dos poemas onde é nítido o interseccionismo impressionista).
"A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no
momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção,
para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que
existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é a sua
existência na inteligência - isto é, na recordação, única parte da inteligência,
propriamente tal, que pode conservar uma emoção" (Fernando Pessoa).
Observa Pessoa que três espécies de emoções produzem grande poesia - emoções
fortes mas rápidas, apreendidas para a arte logo que passam mas não antes de
haverem passado; emoções fortes e profundas na recordação que deixam longo tempo
depois; e falsas emoções, ou seja, emoções sentidas no intelecto. A base de toda
a arte é não a insinceridade, mas sim uma sinceridade traduzida. Assim, o poeta
finge (fingir - do latim fingere - modelar, mudar, transformar, criar) emoções
só imaginadas, artisticamente sinceras, e finge também, outras vezes, emoções
que humanamente sentiu. No segundo caso, há ainda fingimento porque as emoções
passam a ser forma, são filtradas, transpostas em função da expressão poética -
e dizer por palavras implica um processo de intelectualização. A arte é
intelectualização da sensação (do sentimento) através da expressão. A
intelectualização é dada na, pela e mediante a própria expressão. Para a emoção
ser esteticamente verdadeira tem de dar-se (ou de repetir-se, transformando-se)
na inteligência do poeta.
E a emoção do leitor será ainda outra porque as palavras do poema são estímulos
que, provocando um estado de alma, não o determinam na totalidade. No acto de
ler convergem o objectivo e o subjectivo. (Jacinto do Prado Coelho)
4. O TEMPO E A DESAGREGAÇÃO: O REGRESSO À INFÂNCIA
"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu:
sentir hoje o que se sentiu ontem é não sentir - é lembrar hoje o que se sentiu
ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida" (in Livro do
Desassossego).
No mundo perdido da infância, Pessoa sente a nostalgia. Ele que foi "criança
contente de nada" e que em adolescente almejou tudo, aspira agora à desagregação
do tempo e de tudo. Um profundo desencanto e a angústia acompanham o sentido da
brevidade da vida e da passagem dos dias. Ao mesmo tempo que gostava de ter a
infância, de ser as crianças que brincam ("Quando as crianças brincam / E eu as
oiço brincar, / Qualquer coisa em minha alma / começa a se alegrar."), sente a
saudade de uma ternura que lhe passou ao lado ("E toda aquela infância / Que não
tive e vem, / Numa onda de alegria / Que não foi de ninguém."). Busca múltiplas
emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba "sem alegria nem aspiração".
Tenta manter vivo o "enigma" e a visão do que foi, restando-lhe a inquietação, a
solidão e a ansiedade: "Se quem fui é enigma, / E quem serei visão,/ Quem sou ao
menos sinta/ Isto no meu coração."
Pessoa, através do semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego,
afirma que "O meu passado é tudo quanto não consegui ser." Por isso, nada lhe
apetece repetir nem sequer relembrar. O passado pesa "como a realidade de nada"
e o futuro "como a possibilidade de tudo". O tempo é para ele um factor de
desagregação, na medida em que tudo é breve, tudo é efémero. O tempo apaga tudo
- "Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será
outra coisa, e o que vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova
visão."
5.
POESIA COM VERTENTE TRADICIONAL E MODERNISTA
A poesia pessoana contempla:
- o lirismo tradicional, a sensibilidade, a suavidade, a linguagem simples, o ritmo
melodioso se evidenciam;
- a ruptura de vanguarda (poesia modernista), com as experiências modernistas do
simbolismo, do paulismo e do interseccionismo;
- a heteronímia.
Com efeito, em Fernando Pessoa coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista.
Algumas das suas composições seguem a continuidade do lirismo tradicional
português, com marcas do saudosismo; outras iniciam o processo de ruptura, que
se concretiza nos heterónimos ou nas experiências modernistas, que vão desde o
Simbolismo ao Paulismo e ao Interseccionismo, no Pessoa Ortónimo. Nos primeiros
tempos, escreveu na língua em que foi educado, ou seja, em inglês. Depois, por
influência da poesia de Garrett, começou a escrever em português e algumas das
suas composições apresentam a melancolia, a sensibilidade, a suavidade, a
linguagem simples e o ritmo da lírica tradicional. Nota-se em vários poemas não
só esta continuidade do lirismo português, mas também o sebastianismo e o
saudosismo que vem já dos tempos em que escrevia para a revista A Águia e que
utilizará na Mensagem, publicada em 1934.
Na poesia do ortónimo, desde que colaborou no Orpheu, há uma ruptura que se
caracteriza pelas suas experiências modernistas.
"Fernando Pessoa foi um ser-em-poesia", isto é, alguém que criou e viveu "quase
todas as possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo", através dos diversos poemas
e culturas que exprimiu. O seu temperamento levou-o a criar dramas em actos e
acção, com personalidades diferentes, que se revelam na heteronímia.
"Leve, breve, suave" é um dos poemas da continuidade, onde a influência da leitura
da lírica de Almeida Garrett é visível. Há nesse poema uma delicadeza que se
articula perfeitamente com a musicalidade e o ritmo do verso. A isto podemos
juntar a suavidade do momento traduzido pela tripla adjectivação inicial
anteposta ao "canto de ave". Esta forma de escrita, muito próxima do Simbolismo,
com inspiração garrettiana, permite criar um momento encantador e inebriante,
para o que contribui a própria melodia das rimas. E embora haja uma quebra do
encantamento pela tomada de consciência do poeta, que afirma: "Escuto, e
passou...", verifica-se a existência de uma emoção e de uma mágoa pela brevidade
deste mágico momento.
Publicado por
Joaquim Matias da Silva
Trabalho-síntese elaborado com base na seguinte bibliografia:
* BARREIROS, A. José (1982). História da Literatura Portuguesa, vol.2,
9.ª ed., Braga: Editora Pax
* COELHO, J. do Prado (1987). Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa,
9.ª ed., Lisboa: Editorial Verbo.
* GÜNTERT, Georges (1982). Fernando Pessoa – O Eu Estranho, Lisboa:
Publicações Dom Quixote.
* SEABRA, José Augusto, Fernando Pessoa – ou o Poetodrama.
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