E
espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às
vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara
dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei
bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse
que havia que perceber?
Quando o Verão nos passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que isso é senti-lo...
Alberto Caeiro, "O Guardador de
Rebanhos", in Poesia, Lisboa,
Assírio &
Alvim, 2001
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas
ao questionário.
1.
Releia os
primeiros quatro versos. Caraterize a perceção que o
"eu" tem da "Natureza".
2.
Descreva o
estado de espírito do "eu" tal como é expresso nos
versos 5 e 6.
3.
Explicite a relevância das perguntas que constituem a
segunda estrofe.
4.
"Quando o Verão
nos passa pela cara / A mão leve e quente da sua brisa"
(vv. 9-10). Refira dois dos valores expressivos da
personificação presente nos versos transcritos.
5.
Comente o
sentido do último verso enquanto conclusão do poema.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
Segundo os primeiros quatro versos do poema, a
perceção que o "eu" tem da "Natureza"
carateriza-se "Às vezes" por uma intensidade
inesperada: a realidade atinge o "eu" de forma física e
direta ("bate-me a Natureza de chapa / Na cara dos meus
sentidos"). Efetivamente, os poemas de Caeiro
representam a súmula poética de um eu que se confronta
com o mundo. A reflexão operada nesse confronto
compreende um momento de autoinquirição, um processo
iniciático (a "aprendizagem de desaprender"), uma
profissão de fé (a “crença na eterna novidade das
coisas” e em que “tudo é como é e assim é que é”) e um
programa ("O essencial é saber ver / saber ver sem estar
a pensar"). A imagem que abre o poema, funcionando como
um símile da perceção da "Natureza" pelo "eu", torna
particularmente impressivo o caráter físico e
avassalador de tal perceção, associada às sensações de
calor e de forte luz solar recebidas "num dia de Verão",
ao abrir a "porta de casa". (Essa imagem é
particularmente impressiva pelo facto de começar por ser
referido o gesto de espreitar — vv. 1-2 — o que
sublinha, por contraste, a violência e a surpresa da
sensação que lhe corresponde.)
2.
O "eu" sente-se "confuso, perturbado" perante a
intensidade da sua perceção da "Natureza", que tenta em vão compreender racionalmente. De
facto, procura defender-se do choque que a força da
sensação lhe causou. transformando-a numa questão
racionalizável. Como não o consegue, permanece num
estado de confusão e dúvida, que as reticências em final
de estrofe sinalizam. Aliás, temos aqui bem patente um
problema tão típico do "eu" (= de Caeiro) — a
contradição em que se deixa cair porque tem como único
desiderato sentir, mas vemo-lo, não raro, a pensar.
3.
Através das perguntas da segunda estrofe, o "eu"
faz uma autocrítica, pois se
é verdade que surge (ou quer surgir) como um
lírico espontâneo, instintivo, inculto, impessoal e
forte como a voz da Terra (...), não menos verdadeiro é
que a cada instante pensa e analisa as sensações, o
mundo que vê (não foi em vão que Jacinto do
Prado Coelho afirmou: “Indubitavelmente, Caeiro é
sobretudo inteligência”). Ora, quando tal acontece,
deixa de ver, fica cego, afasta-se do objetivismo
absoluto que tanto apregoa, distancia-se do
sensacionismo, cuja base programática e vivencial
assentaria na substituição do pensamento pela sensação.
Ao fazer uma autocrítica, o sujeito poético está a pôr em
causa a sua vontade de "querer perceber" a
naturalidade da Natureza e então, como modo de reagir ao seu estado de
desorientação, tenta libertar-se da
própria necessidade de racionalizar, expressa na estrofe
anterior. Assim, o "eu" sugere que é esse mesmo impulso
da intelectualização ("E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
" -
v. 5) a causa da sua perturbação
momentânea perante a "Natureza".
4.
A personificação presente nos versos 9-10 tem, entre
outros, os seguintes valores expressivos:
— intensificar a sensação percecionada;
— atribuir à "Natureza" um papel de fonte de sensações;
— expressar uma relação física e direta entre o "eu" e a
"Natureza", numa tentativa de concretizar uma
efetiva integração e uma plena comunhão com a Natureza,
nem que para isso seja necessário o apagamento do sujeito
face ao objeto (coisificação do eu);
— no seguimento dessa mesma personificação, o eu lírico
evidencia a aceitação calma do mundo, tal qual ele é:
com alegria e com tristeza, com felicidade e
infelicidade, com riqueza e pobreza, com agradabilidade
ou desconforto ("Só
tenho que sentir agrado porque é brisa / Ou que sentir
desagrado porque é quente" - vv. 11-12).
Nota 1:
se tiver dúvidas e quiser rever os recursos
estilísticos, abra
esta página.
5.
O último verso sintetiza a decisão definitiva do "eu":
"sentir" as sensações da "Natureza" tal
como o seu corpo as recebe, sem se perguntar porquê.
Como conclusão do poema, e nomeadamente do raciocínio
desenvolvido na última estrofe, este verso expressa o
conceito de que
a sensação é sempre clara e simples e que apenas há que
senti-la, o que implica o rejeitar da avaliação
racional. Na verdade, tentar "perceber" dificulta, se é
que não impede mesmo, o "sentir", que é um modo direto
de aceder à realidade. O pensamento puramente intelectual
é proibido, pois afasta do bom caminho. Na verdade, o
espelho, que apenas reflete, está mais perto da verdade
do que o pensador. As ideias são falsidades por detrás
das quais se encontra o abstracto, não a vida. Só existe
o que é visível. Por isso, o acaso domina o mundo do eu
lírico, mundo esse que respira atualidade e onde o
presente consiste em meros "agoras” que se sucedem
muito rapidamente e que, com a mesma efemeridade, se anulam
uns aos outros.
Nota 2:
ver
aqui
análises ou leituras orientadas de outros
poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Talvez também tenha interesse em ver comentáros
de poemas e estudos integrais de todas as obras e
autores que fazem parte dos programas de
Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao
12.º anos de escolaridade.