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Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

XXII


Como quem num dia de Verão abre a porta de casa

E espreita para o calor dos campos com a cara toda,

Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa

Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber

Não sei bem como nem o quê...


Mas quem me mandou a mim querer perceber?

Quem me disse que havia que perceber?


Quando o Verão nos passa pela cara
 A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que isso é senti-lo...


Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos", in Poesia, Lisboa,

Assírio & Alvim, 2001

 

 

 

 

Análise / Leitura orientada

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.
1. Releia os primeiros quatro versos. Caraterize a perceção que o "eu" tem da "Natureza".

2. Descreva o estado de espírito do "eu" tal como é expresso nos versos 5 e 6.
3. Explicite a relevância das perguntas que constituem a segunda estrofe.
4.  "Quando o Verão nos passa pela cara / A mão leve e quente da sua brisa" (vv. 9-10). Refira dois dos valores expressivos da personificação presente nos versos transcritos.
5. Comente o sentido do último verso enquanto conclusão do poema.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. Segundo os primeiros quatro versos do poema, a perceção que o "eu" tem da "Natureza" carateriza-se "Às vezes" por uma intensidade inesperada: a realidade atinge o "eu" de forma física e direta ("bate-me a Natureza de chapa / Na cara dos meus sentidos"). Efetivamente, os poemas de Caeiro representam a súmula poética de um eu que se confronta com o mundo. A reflexão operada nesse confronto compreende um momento de autoinquirição, um processo iniciático (a "aprendizagem de desaprender"), uma profissão de fé (a “crença na eterna novidade das coisas” e em que “tudo é como é e assim é que é”) e um programa ("O essencial é saber ver / saber ver sem estar a pensar"). A imagem que abre o poema, funcionando como um símile da perceção da "Natureza" pelo "eu", torna particularmente impressivo o caráter físico e avassalador de tal perceção, associada às sensações de calor e de forte luz solar recebidas "num dia de Verão", ao abrir a "porta de casa". (Essa imagem é particularmente impressiva pelo facto de começar por ser referido o gesto de espreitar — vv. 1-2 — o que sublinha, por contraste, a violência e a surpresa da sensação que lhe corresponde.)

 

 

2.  O "eu" sente-se "confuso, perturbado" perante a intensidade da sua perceção da "Natureza", que tenta em vão compreender racionalmente. De facto, procura defender-se do choque que a força da sensação lhe causou. transformando-a numa questão racionalizável. Como não o consegue, permanece num estado de confusão e dúvida, que as reticências em final de estrofe sinalizam. Aliás, temos aqui bem patente um problema tão típico do "eu" (= de Caeiro) — a contradição em que se deixa cair porque tem como único desiderato sentir, mas vemo-lo, não raro, a pensar.

 

3. Através das perguntas da segunda estrofe, o "eu" faz uma autocrítica, pois se é verdade que surge (ou quer surgir) como um  lírico espontâneo, instintivo, inculto, impessoal e forte como a voz da Terra (...), não menos verdadeiro é que a cada instante pensa e analisa as sensações, o mundo que vê (não foi em vão  que  Jacinto do Prado Coelho afirmou: “Indubitavelmente, Caeiro é sobretudo inteligência”). Ora, quando tal acontece, deixa de ver, fica cego, afasta-se do objetivismo absoluto que tanto apregoa, distancia-se do sensacionismo, cuja base programática e vivencial assentaria na substituição do pensamento pela sensação. Ao fazer uma autocrítica, o sujeito poético está a pôr em causa a sua vontade de "querer perceber" a naturalidade da Natureza e então, como modo de reagir ao seu estado de desorientação, tenta libertar-se da própria necessidade de racionalizar, expressa na estrofe anterior. Assim, o "eu" sugere que é esse mesmo impulso da intelectualização ("E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber " - v.  5) a causa da sua perturbação momentânea perante a "Natureza".

 

4. A personificação presente nos versos 9-10 tem, entre outros, os seguintes valores expressivos:
— intensificar a sensação percecionada;
— atribuir à "Natureza" um papel de fonte de sensações;
— expressar uma relação física e direta entre o "eu" e a "Natureza", numa tentativa de  concretizar uma efetiva integração e uma plena comunhão com a Natureza, nem que para isso seja necessário o apagamento do sujeito face ao objeto (coisificação do eu);

— no seguimento dessa mesma personificação, o eu lírico evidencia a aceitação calma do mundo, tal qual ele é: com alegria e com tristeza, com felicidade e infelicidade, com riqueza e pobreza, com agradabilidade ou desconforto ("Só tenho que sentir agrado porque é brisa / Ou que sentir desagrado porque é quente" - vv. 11-12).

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

 

5. O último verso sintetiza a decisão definitiva do "eu": "sentir" as sensações da "Natureza" tal como o seu corpo as recebe, sem se perguntar porquê. Como conclusão do poema, e nomeadamente do raciocínio desenvolvido na última estrofe, este verso expressa o conceito de que a sensação é sempre clara e simples e que apenas há que senti-la, o que implica o rejeitar da avaliação racional. Na verdade, tentar "perceber" dificulta, se é que não impede mesmo, o "sentir", que é um modo direto de aceder à realidade. O pensamento puramente intelectual é proibido, pois afasta do bom caminho. Na verdade, o espelho, que apenas reflete, está mais perto da verdade do que o pensador. As ideias são falsidades por detrás das quais se encontra o abstracto, não a vida. Só existe o que é visível. Por isso, o acaso domina o mundo do eu lírico, mundo esse que respira atualidade e onde o presente consiste em meros "agoras” que se sucedem muito rapidamente e que, com a mesma efemeridade, se anulam uns aos outros.

 

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

Escrito e publicado, com adaptações, por

Joaquim Matias da Silva

 

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Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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