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Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

DA MINHA ALDEIA VEJO QUANTO DA TERRA SE PODE VER DO UNIVERSO...

 

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,

Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...


Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

 

Alberto Caeiro, Poemas, 10.ª ed., Lisboa,Ática,1997

da poética de Caeiro

 

 

 

Análise / Leitura orientada

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
• oposição entre a "aldeia" e a "cidade"
• importância do acto de ver
• recursos estilísticos relevantes

• traços da poética de Caeiro.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

Oposição entre a "aldeia" e a "cidade"
 

O poema organiza-se em torno da caraterização contrastiva da "minha aldeia" e das "cidades" ou da "cidade", caraterização essa que se desenvolve, porém, em termos inesperados.

Assim, a "minha aldeia" é apresentada como lugar de eleição, na medida em que permite ao sujeito o grau máximo de visibilidade do "quanto da terra se pode ver do Universo" (v. 1); por esse motivo, ela supera o estatuto de povoação diminuta que por definição é o seu, tornando-se "tão grande como outra terra qualquer" (v. 2).

 

 

A cidade, por seu lado, revela-se limitativa, pois "as grandes casas" enclausuram o olhar, ocultam-lhe o céu e afastam-no da natureza ("Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, / Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu," - vv. 7 e 8), ou, por outras palavras, desapossam-nos da "nossa única riqueza" que "é ver" (v. 10).

 

Em suma, a cidade tem um efeito de fechamento e afasta "a vista" (v. 7) do "horizonte" e do "céu" (v. 8), enquanto a aldeia propicia a abertura para o infinito ("Universo" - v. 1). Consequentemente, a cidade aparece correlacionada com a ideia expressa nos versos 9 e 10 ("Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, / E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver."),  por oposição à aldeia, que consubstancia o enunciado no verso 2 ("Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer") e, de forma implícita, a riqueza (v. 10), invertendo, deste modo, as noções tradicionais de aldeia e de cidade.

 


 

 

Importância do ato de ver
 

O desenvolvimento da oposição entre aldeia e cidade faz emergir, como ideia nuclear do poema, a importância do ato de ver, manifestada, desde logo, pela utilização de formas do verbo ver e de vocábulos com ele semanticamente relacionados ("vista", "olhar", "olhos" - vv. 7, 8 e 9). Para o sujeito poético, a visão é um modo de conhecimento privilegiado, pois permite percecionar a imensidão do mundo, superando a dimensão física limitada do "eu" (vv. 3-4). Com efeito, é o olhar que determina a configuração do mundo e do próprio ser, na medida em que existe uma relação entre a extensão do campo de visão e a do espaço em que o "eu" se situa ("Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo... / Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer," - vv. 1-2); o que o sujeito vê e a perceção que tem de si ("eu sou do tamanho do que vejo/ E não do tamanho da minha altura..." - vv. 3-4); e a possibilidade de visão e o valor da existência humana ("as grandes casas fecham a vista à chave", "Tornam-nos pequenos", "tornam-nos pobres", "a nossa única riqueza é ver" - vv. 7, 9 e 10).

 

Recursos estilísticos relevantes

 

São relevantes, entre outros, os seguintes aspetos estilísticos: a presença de construções causais, com destaque para a reiteração ou repetição da conjunção "porque", evidenciando a intenção explicativa do discurso por parte do eu da enunciação ("Por isso", "Porque eu sou", "porque nos tiram", "porque a nossa única riqueza" - vv. 2, 3, 9 e 10); a utilização da estrutura paralelística (paralelismo anafórico), amplificando a noção de perda ("Tornam-nos pequenos porque [...] / E tornam-nos pobres porque [...]" - vv. 9-10); o recurso ao grau comparativo dos adjetivos (comparação), com o intuito de caraterizar a "aldeia" por referência a outros espaços, realçando-se, por um lado, o nível idêntico de grandeza existente entre a "aldeia" e "outra terra qualquer" (v. 2) e, por outro lado, apoucando a vida na cidade para valorizar a vida na aldeia ("Nas cidades a vida é mais pequena / Que aqui na minha casa" — vv. 5-6); e a conjugação da metáfora ("fecham a vista à chave", "empurram o nosso olhar" — vv. 7-8) com a personificação de "casas" ("fecham", "Escondem", "empurram", "tiram"), para sublinhar a atrofia do ver, provocada pelo ambiente citadino.

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

 

 

 

Traços da poética de Caeiro
 

O poema evidencia muitos dos traços representativos da poética de Caeiro.

No plano fónico-formal, temos o verso branco, livre, prosaico; a irregularidade estrófica (uma quadra e uma sextilha); a ausência de qualquer rigidez no que concerne aos esquemas métrico, rimático e melódico; e o ritmo lento, espraiado, sugerindo calma, quietude, reflexão, num deslizar vagaroso e contínuo que se acompanha com agrado.

No plano morfossintático, identificamos o vocabulário pobre, predominantemente discursivo; o predomínio do presente do indicativo;  as repetições e frequentes enumerações; a construção paralelística; a linguagem simples, corrente reiterativa, prosaica, fortemente denotativa e referencial, com abundância de construções causais, visando explicar conceitos; a sobriedade de recursos estilísticos, muito embora nos confrontemos com um uso frequente de comparações e imagens singelas (de mais fácil interpretação), mas parcimónia no recurso a metáforas, metonímias e hipérboles, por exemplo (que exigem a uma maior intervenção nos planos simbólico e inferencial ; e o estilo espontâneo e ingénuo.

No plano ideológico, tornam-se notórias a  apologia da visão como valor essencial (o Poeta vive de sensações, de impressões, dando destaque à sensação visual: "... a nossa única riqueza é ver"); a relação de harmonia / integração e comunhão com a Natureza;  o objetivismo absoluto; e o sensacionismo.

 

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

Escrito e publicado, com adaptações, por

Joaquim Matias da Silva

 

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Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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