DA MINHA
ALDEIA VEJO QUANTO DA TERRA SE PODE VER DO UNIVERSO...
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do
Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como
outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que
vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o
que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres
porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, Poemas, 10.ª ed., Lisboa,Ática,1997
da poética de Caeiro
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento
dos seguintes tópicos:
• oposição entre a "aldeia" e a "cidade"
• importância do acto de ver
• recursos estilísticos relevantes
• traços da poética de Caeiro.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
Oposição entre a "aldeia" e a "cidade"
O poema organiza-se em torno da caraterização
contrastiva da "minha aldeia" e das "cidades" ou da
"cidade", caraterização essa que se
desenvolve, porém, em termos inesperados.
Assim, a "minha aldeia" é apresentada como lugar de
eleição, na medida em que permite ao sujeito o grau
máximo de visibilidade do "quanto da terra se pode ver
do Universo" (v. 1); por esse motivo, ela supera o
estatuto de povoação diminuta que por definição é o seu,
tornando-se "tão grande como outra terra qualquer" (v.
2).
A cidade, por seu lado, revela-se limitativa, pois "as
grandes casas" enclausuram o olhar, ocultam-lhe o céu e
afastam-no da natureza ("Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
/
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu," -
vv. 7 e 8), ou, por outras palavras,
desapossam-nos da "nossa única riqueza" que "é ver" (v.
10).
Em suma, a cidade tem um efeito de fechamento e afasta
"a vista" (v. 7) do "horizonte" e do "céu" (v. 8),
enquanto a aldeia propicia a abertura para o infinito
("Universo" - v. 1). Consequentemente, a
cidade aparece correlacionada com a ideia expressa nos
versos 9 e 10 ("Tornam-nos
pequenos
porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
/
E
tornam-nos
pobres
porque a nossa única riqueza é ver."),
por oposição à aldeia, que consubstancia o enunciado no
verso 2 ("Por
isso a minha aldeia é
tão
grande
como outra terra qualquer")
e, de forma implícita, a
riqueza
(v. 10), invertendo, deste modo, as noções tradicionais
de aldeia e de cidade.
Importância do ato de ver
O desenvolvimento da oposição entre aldeia e cidade faz
emergir, como ideia nuclear do poema, a importância do
ato de ver, manifestada, desde logo, pela utilização de
formas do verbo
ver
e de vocábulos com ele
semanticamente relacionados ("vista", "olhar", "olhos"
- vv. 7, 8 e 9). Para o sujeito poético, a visão é um modo de
conhecimento privilegiado, pois permite percecionar a
imensidão do mundo, superando a dimensão física
limitada do "eu" (vv. 3-4). Com efeito, é o olhar que
determina a configuração do mundo e do próprio ser, na
medida em que existe uma relação entre a extensão do campo de visão e a do espaço em que o
"eu" se situa ("Da
minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do
Universo... / Por isso a minha aldeia é tão grande como
outra terra qualquer,"
- vv. 1-2); o que o sujeito vê e a perceção que tem de si ("eu
sou do tamanho do que vejo/ E não do tamanho da minha
altura..." - vv. 3-4); e a possibilidade de visão e o valor da existência
humana ("as grandes casas fecham a vista à chave",
"Tornam-nos pequenos", "tornam-nos pobres", "a nossa
única riqueza é ver" - vv. 7, 9 e 10).
Recursos estilísticos relevantes
São relevantes, entre outros, os seguintes aspetos
estilísticos: a presença de construções causais, com
destaque para a
reiteração ou repetição
da conjunção "porque", evidenciando a
intenção explicativa do discurso por parte do eu da
enunciação ("Por isso", "Porque eu
sou", "porque nos tiram", "porque a nossa única riqueza"
- vv. 2, 3, 9 e 10); a utilização da estrutura paralelística
(paralelismo
anafórico), amplificando a
noção de perda ("Tornam-nos pequenos porque [...] / E
tornam-nos pobres porque [...]" - vv. 9-10); o recurso ao grau comparativo dos adjetivos
(comparação), com o
intuito de caraterizar a "aldeia" por referência a
outros espaços, realçando-se, por um lado, o nível
idêntico de grandeza existente entre a "aldeia" e "outra
terra qualquer" (v. 2) e, por outro lado, apoucando
a vida na cidade para valorizar a vida na aldeia ("Nas
cidades a vida é mais pequena / Que aqui na minha casa"
— vv. 5-6); e a conjugação da
metáfora
("fecham a vista à chave", "empurram o nosso olhar" —
vv. 7-8) com a
personificação
de "casas" ("fecham", "Escondem", "empurram", "tiram"),
para sublinhar a atrofia do ver, provocada pelo ambiente
citadino.
Nota 1:
se tiver dúvidas e quiser rever os recursos
estilísticos, abra
esta página.
Traços da poética de Caeiro
O poema evidencia muitos dos traços representativos da
poética de Caeiro.
No plano fónico-formal, temos o verso branco, livre, prosaico;
a irregularidade estrófica (uma quadra e uma sextilha);
a ausência de qualquer rigidez no que concerne aos
esquemas métrico, rimático e melódico; e o ritmo lento,
espraiado, sugerindo calma, quietude, reflexão, num
deslizar vagaroso e contínuo que se acompanha com
agrado.
No plano morfossintático, identificamos o vocabulário pobre,
predominantemente discursivo; o predomínio do presente
do indicativo; as repetições e frequentes
enumerações; a construção paralelística; a linguagem
simples, corrente reiterativa, prosaica, fortemente
denotativa e referencial, com abundância de construções
causais, visando explicar conceitos; a sobriedade de
recursos estilísticos, muito embora nos confrontemos com
um uso frequente de comparações
e imagens singelas (de mais fácil interpretação), mas parcimónia no recurso a
metáforas, metonímias e hipérboles, por exemplo (que
exigem a uma maior intervenção nos planos simbólico e
inferencial ; e o
estilo espontâneo e ingénuo.
No plano ideológico, tornam-se notórias a apologia da visão como valor essencial
(o Poeta vive de sensações, de impressões, dando
destaque à sensação visual: "...
a nossa única riqueza é ver");
a relação de harmonia / integração e comunhão com a Natureza;
o objetivismo absoluto; e o sensacionismo.
Nota 2:
ver
aqui
análises ou leituras orientadas de outros
poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Talvez também tenha interesse em ver comentáros
de poemas e estudos integrais de todas as obras e
autores que fazem parte dos programas de
Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao
12.º anos de escolaridade.