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Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

X - OLÁ, GUARDADOR DE REBANHOS



«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?»

«Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?»

«Muita coisa mais do que isso,
Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.»

«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»

s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10.ª ed. 1993). - 40.
“O Guardador de Rebanhos”. 1.ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.

 

 

 

 

Análise / Leitura orientada

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

Analise e comente o texto, focando os seguintes aspetos:
a expressividade da estrutura dialógica
a caraterização simbólica dos interlocutores
a mensagem veiculada
inserção na poética deste heterónimo pessoano e  marcas de distanciamento em relação ao ortónimo

• recursos estilísticos mais expressivos.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

A expressividade da estrutura dialógica

 

Esta é uma das mais emblemáticas composições de Alberto Caeiro. Simples, como simples é o "Guardador de Rebanhos", o texto apresenta uma estrutura dialógica, em que um "tu", um interlocutor, se dirige a um "eu". Esse "tu" tem uma visão subjetiva da realidade, pois o vento desperta-lhe ora evocações de acontecimentos passados ("Fala-me de muitas outras coisas. / De memórias e de saudades" - vv. 9-10) ora conjeturas sobre o que o espera no futuro ("E de coisas que nunca foram." - v. 11). Inversamente, a visão do "eu" é subjetivista, pois para ele o vento não passa disso mesmo - vento ("O vento só fala do vento" - v. 15).

Perante uma realidade natural - o vento - há então um confronto dialógico e ideológico entre um "eu" (o sujeito poético), materialista, que afirma que o vento não tem qualquer mistério, apenas passa, e um "tu", para quem o vento aparece personificado, vendo a Natureza imbuída de uma carga psicológica ("... memórias e ... saudades..." - v. 10) e metafísica (" ... coisas que nunca foram" - v. 11). Temos, assim, uma contraposição entre uma visão da Natureza emotiva, mítica, povoada de fantasmas e uma visão fenomenológica ou objetiva da mesma.

O texto consubstancia-se, deste modo, como a manifestação de uma intenção que se integra na atitude mental e poética de um "eu" que, através de um processo elementar — pergunta/resposta —, expõe a forma como se relaciona com o real, evidenciando  uma atitude de recusa de qualquer filosofia especulativa ("O vento só fala do vento. / O que lhe ouviste foi mentira, / E a mentira está em ti." - vv. 13-15).


 

A caraterização simbólica dos interlocutores

 

O sujeito poético identifica-se, naturalmente, com o Guardador de Rebanhos, um homem de visão ingénua, instintiva, deliciado com a infinita variedade do espectáculo das sensações (recorde-se que Alberto Caeiro diz de si mesmo que é “O Argonauta das sensações verdadeiras”), antimetafísico, que é contra a interpretação do real pela inteligência, porque essa interpretação reduziria as coisas a simples conceitos vazios, um homem experiente dos fenómenos da natureza que apreende exclusivamente através dos sentidos (sensacionismo).

Por contraste, o seu interlocutor poderá ser alguém que vê para além do que os sentidos percecionam, que imagina e transfigura a realidade, traindo-a, na opinião do Guardador de Rebanhos. Quem ou o que estará por trás desse interlocutor? Duas hipóteses podem ser levantadas: uma visão cristã da Natureza - o misticismo naturalista, apregoado por S. Francisco de Assis; ou a voz de um poeta ou de um filósofo (o próprio Pessoa-ipse, o Pessoa ortónimo?)  na sua permanente inquietação metafísica, refletida no platonismo de certos textos, no seu hermetismo, esoterismo ou ocultismo.

 

 A mensagem veiculada

 

Para Alberto Caeiro, "O que nós vemos das coisas são as coisas", por isso, neste texto, ele tem dificuldade em aceitar que o vento possa, para os outros, significar mais alguma coisa; para ele, o conhecimento é feito apenas pelos sentidos - sensacionismo -pelo que só existe o que é visível. O acaso domina, por isso, o seu mundo, mundo esse que respira atualidade. Com esta forma de agir, este heterónimo pensa ter encontrado a felicidade não perturbada pelas inquietações do pensamento. É com serenidade que ele responde ao seu interlocutor : "Nunca ouviste passar o vento..." - v. 12.

 

Inserção na poética deste heterónimo pessoano

 

Esta composição integra-se perfeitamente na poética de Caeiro. Vejamos: a nível formal, constatamos a irregularidade estrófica, a ausência de esquema métrico rígido (versos heterométricos), o versilibrismo; a nível morfossintático, temos uma linguagem simples, familiar, prosaica, reiterativa (própria de quem não tem mais estudos  que a 4.ª classe), um tom coloquial (cujas marcas linguísticas são a saudação inicial, a presença da 2.ª pessoa, o vocativo, a interrogação e a própria estrutura dialógica -pergunta /resposta), ausência de adjetivos e de advérbios, uso frequente da conjunção “e” (cf. 2.ª estrofe); repetições e enumerações (cf. 2.ª estrofe), estilo infantil, espontâneo, instintivo, ingénuo; finalmente, a nível ideológico, merecem uma menção especial o objetivismo absoluto, a integração e comunhão com a natureza, o sensacionismo (o Poeta vive de sensações, de impressões), a aceitação calma do mundo, tal qual ele é, e o deambulismo (ele é um poeta pastor).

 

Marcas de distanciamento em relação ao ortónimo

 

Fernando Pessoa ortónimo não subscreveria esta filosofia (como gostaria ele de a poder aceitar!...) porque na sua poesia o pensamento, a reflexão são constantes que interferem na sua relação com a realidade e impedem a felicidade ("O que lhe ouviste foi mentira, / E a mentira está em ti." vv. 14-15). Caeiro é tranquilidade,  é objetivismo absoluto, é integração e comunhão com a natureza, é coisificação do eu (põe-se ao mesmo nível das coisas, não é mais nem menos que as outras coisas da Natureza, é apenas diferente), é sensacionismo (o Poeta vive de sensações, de impressões, dando destaque à sensação visual, logo seguida da auditiva), é crença na eterna novidade das coisas (a diferença, para ele, é o verdadeiro signo do existir), é epicurismo/carpe diem, é aceitação calma do mundo, tal qual ele é (com alegria e com tristeza, com felicidade e infelicidade, com riqueza e pobreza, é panteísmo sensorial (a presença de Deus está nas próprias coisas, mesmo nas mais insignificantes), é deambulismo (ele é um poeta pastor), é misticismo naturalista, é instinto, e é, sobretudo, felicidade porque não pensa, tal como acontece com a ceifeira de Pessoa ("Ela canta, pobre ceifeira) ou o gato que brinca na rua ("Gato que brincas na rua").  Inversamente, Pessoa é pensamento, é dor, fingimento, divisão, indefinição, inconstância, pluralidade, fragmentação, fuga, tentativa de vivência do "eu" nos "outros", é angústia e infelicidade, é tudo aquilo que Caeiro não é.

Estas diferenças entre o "Mestre" e o seu Criador levam-nos a acreditar que Caeiro encarne, dentro do poetadrama, o polo objetivo do sistema heteronímico e que não passe da personificação ansiosamente esperada por Pessoa de um sonho ideal até então insatisfeito. Através dele, Pessoa regressaria à origem do sentir e do pensar humanos, como devia ter sido na Idade de Ouro dos homens, a um sentir e pensar que ele assinala como "pagão" ou "grego'', termo que surge corno oposição a "cristão" e que é empregue no sentido daquela relação jovial e serena com a Natureza e com o próprio ser, sem o peso das sensações de culpa e de expiação cristãs ou pós-cristãs. Estamos, certamente, perante uma tentativa de Pessoa de regresso ao jardim edénico do instintivo, da felicidade inconsciente, ao mundo do sonho e, consequentemente, irreal, imaginário.

 

Há também marcas de natureza formal — ausência de processos versificatórios, linguagem e estilo — que afastam a poesia do ortónimo da de Caeiro.

 

 

Recursos estilísticos mais expressivos

 

A sobriedade de recursos estilísticos é uma marca da poesia de Caeiro e se é notório o uso frequente de comparações e imagens singelas não menos evidente é a parcimónia de metáforas, metonímias e hipérboles, por exemplo, figuras de estilo que exigiriam uma  maior intervenção da mente, da atividade reflexiva, contra a qual se manifesta o Poeta do olhar..

De qualquer dos modos, podemos apontar, nesta composição, algumas intencionalidades estilísticas que conferem literariedade ao texto. Assim, logo na primeira estrofe, encontramos uma apóstrofe ou invocação ("Olá, guardador de rebanhos," - v. 1) e uma interrogação ("Que te diz o vento que passa?" v. 3), uma e outra a introduzirem o discurso dialógico, com a saudação inicial e a pergunta propriamente dita. Depois, na segunda estrofe, temos a enumeração polissindética e anafórica ("... e que ...e que... e que..."), a gradação temporal (passado/presente/futuro - "... passa ... passou... passará..."), a antítese pleonástica ("... passou antes, ...  passará depois."), todas elas a sugerirem a ideia de que o vento, como qualquer coisa natural, seguiu, segue e seguirá o seu curso normal e cíclico, assim como a aliterção em /-q/, /-p/ e /-s/ ("Que é vento, e que passa, / E que passou antes, / E que passará depois"), a denunciar essa mesma ideia de passagem cíclica das coisas naturais. Finalmente, será de referir a anadiplose ("Nunca ouviste passar o vento. / O vento só fala do vento, a epanadiplose ("O vento só fala do vento") e a epífora ou epístrofe ("Nunca ouviste passar o vento. / O vento só fala do vento"), nos dois primeiros versos da última estrofe, que, por constituirem todas elas fenónemos de repetição de palavras (no final de um verso e no princípio do verso seguinte, no princípio e no fim do mesmo verso e no final de versos seguidos, respetivamente), centralizam todo o discurso no vento, ao mesmo tempo que evidenciam uma das caraterísticas principais da poesia de Alberto Caeiro - a liguagem reiterativa, pobre, própria de um homem ingénuo e com pouca instrução.

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

 

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

Escrito e publicado, com adaptações, por

Joaquim Matias da Silva

 

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Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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