Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os
olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se-me com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades
nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me
ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali
deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros
análogos –
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem
inteligência para o
compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.
(Fernando
Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos,Lisboa, IN-CM,
1992)
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
1.
Divida a composição poética nas suas possíveis partes
lógicas e faça uma síntese da mensagem poética de cada
uma delas.
2.
O sujeito evoca uma viagem de barco.
2.1.
Caraterize o espaço físico representado e diga se ele e
a sua envolvência formam um enquadramento favorável ao
sujeito poético para proceder a uma reflexão sobre a sua
própria existência, destacando algumas das
caraterísticas que ele deixa transparecer ao longo da
composição. Ilustre a resposta com ideias e/ou
expressões do texto.
3.
Interprete a comparação entre o "eu" e "um livro"( vv.
11-12), relacionando-a com a alusão à infância
(vv.16-18).
4.
Ao longo da composição, somos confrontados com a
oposição eu / outros. Em conformidade com as ideias e
expressões aí presentes, clarifique esse tipo de
relação.
5.
Identifique, exemplifique e explicite o valor de quatro
recursos estilísticos, que sirvam de
suporte à ênfase dada pelo sujeito poético ao seu estado
de recorrente angústia.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
A composição poética pode ser dividida em três partes
lógicas. A primeira corresponde à primeira estrofe, onde
o eu lírico procede ao enquadramento espacial (convés de
um navio, cadeira, salão de fumo…) e introduz o tema
que, mais à frente, irá desenvolver: a sua existência
está a demoronar-se – “E o meu destino apareceu-me na
alma como um precipício.”
Na segunda parte, que engloba as segunda, terceira e
quarta estrofes, o sujeito poético, como que entorpecido
pelo embalo do navio, de olhos fechados, foge da dura
realidade do presente e do futuro, que antevê também
dramático, e refugia-se no conforto de uma infância que
considera ter sido vivida de forma inconsciente, porém
feliz ("Quando
brincava na quinta..." - v. 17).
É que agora ele é um ser pensante, consciente (" ....
e não sabia álgebra [agora sabe], /
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento" - vv.
17-18)
e o pensar causa infelicidade, "incomoda como andar à
chuva", como dizia o seu mestre Alberto Caeiro - dor de
pensar, uma das linhas ideológicas mais recorrentes na
poesia pessoana.
Na terceira parte, que compreende o último verso
(monóstico), há como que um “acordar” do eu da
enunciação, sendo posto um ponto final nessa viagem pelo
tempo, a que sobrevém a constatação de que a sua vida
irá continuar a ser preenchida pela solidão, por um
vazio deprimente. A invocação final (“… ó Álvaro”)
sugere a comiseração do eu lírico pela desventura e pelo
tedium vitae do Álvaro de Campos da terceira fase da sua
evolução poética.
2.
O espaço físico evocado é o convés dum navio, numa
viagem marítima, em noite de luar. A "cadeira de
convés", em que o sujeito se representa recostado para
trás, o "ruído do salão de fumo", onde "acabara a
partida de xadrez" (vv. 4 e 5), a alusão à "sueca" (v.
12) são elementos indiciadores do ambiente requintado e
cosmopolita dos paquetes de luxo. O movimento cadenciado
das ondas, balouçando a cadeira de convés ("Ah, balouçado
/
Na sensação das ondas" -
vv. 6-7), e a
presença do luar ("
E havia luar..." -
v. 25) completam o quadro com a
sugestão de um mar tranquilo. Estamos, pois, perante um
ambiente propício à rememoração, à evocação da infância…
Ora, através dessa evocação, ele deixa transparecer
algumas das suas caraterísticas: no passado, foi
inconsciente, não teve responsabilidades nenhumas
(“Quando brincava na quinta e não sabia álgebra”), foi
um ser insignificante (“Aqueles momentos em que não tive
importância nenhuma”), mas feliz (“Ah, todo eu anseio
por esse momento…”); no presente, vê-se momentaneamente
reconfortado (“Na ideia tão confortável de hoje ainda
não ser amanhã”) e deixa-se levar pelo “torpor da
imaginação”, esquecendo todas as contrariedades da vida;
para o futuro, antevê o retorno à sua “(a)normalidade”:
um ser abandonado, em vias de autodestruição (“E o meu
destino apareceu-me na alma como um precipício”), vazio,
deprimido, invadido por um tedium vitae angustiante…
No final do poema, o sujeito poético expressa,
reiteradamente, o seu anseio por aqueles momentos da sua
vida em que, tal como na cadeira de convés, se entregou,
sem preocupações, ao presente, vivido e apreciado
enquanto tal.
O anseio do sujeito poético por estes momentos sem
importância nenhuma – em que nada acontece e a própria
consciência do "eu" está como que suspensa, porque
semiadormecida ("momentos em que não tive importância
nenhuma") – funda-se, nomeadamente, nas seguintes
razões: tais instantes possibilitam ao "eu" o experienciar do
próprio "vácuo da existência", sem o problematizar ou
questionar dentro de si; esses momentos significam repentinas aproximações do
"eu" adulto à sua infância perdida, em que viver fora,
simplesmente, fruir em pleno cada instante.
3.
A comparação entre o "eu" e "um livro" é legível de
vários modos, nomeadamente:
- a casualidade banal do livro ali deixado é aproximada
à sensação de estar ali, esquecido de si, liberto de
cuidados e de obrigações;
- ao comparar-se com o livro deixado ali por acaso, o
"eu" aponta para o seu estatuto de indiferença ou
anonimato - ele está ali "na cadeira de convés" como uma
coisa em que ninguém repara;
- ao comparar-se com o livro, que guarda saberes,
inquietações, mundos alternativos, prontos a
actualizarem-se na leitura, o sujeito afirma também que
a consciência do tempo e do "eu" permanece guardada
dentro de si e está apenas e temporariamente suspensa
("pelo menos neste momento").
A alusão à infância é suscitada pela analogia entre o
estado de espírito de sujeito lírico – recostado na
cadeira do convés – e a criança que fora "outrora".
"Quando brincava na quinta", ignorante dos saberes e das
convenções dos adultos, o "eu" da infância vivia o
presente com a despreocupação da sua inconsciência
infantil e da sua inocência. Essa pureza original
perdida é como que recuperada naquele instante
privilegiado de semiadormecimento que permite ao sujeito
abandonar-se à simples vivência do momento.
4.
A interjeição "Ah" ocorre, anaforicamente, nos versos 6,
8, 13, 19 e 22. Surgindo com uma alternância de
intervalos quase regulares, esta anáfora marca, por um
lado, o ritmo
do poema - um ritmo embalador, baloiçante, incerto, como
incerta é a sua vida… Por outro lado, pela associação
aos adjetivos "balouçado", "embalado", "afundado", a
repetição da interjeição "Ah" assinala um crescendo no
estado de torpor a que o sujeito poético se entrega, o que
lhe causa
um estado de dormência, despoletador
duma viagem pelos mundos da memória…
As duas ocorrências finais, em que esta anáfora se
expande em unidades maiores ("Ah, todo eu anseio / Por
esse momento", "Ah, todo eu anseio por esse momento"),
tornam mais claro o sentimento contido na interjeição: o
desejo de reencontro, por parte do eu da enunciação, com esse
instante e "outros análogos" do passado.
A irregularidade formal da composição contribui
grandemente para o ritmo irregular do poema, ora mais
rápido, ora mais calmo, como que sugerindo o
desequilíbrio, a instabilidade e o conflito interiores
do sujeito poético.
5.
De entre os vários recursos estilísticos, podem ser
referidos os a seguir explicitados.
O transporte ou encavalgamento, nos primeiros versos das
estrofes dois ("Ah,
balouçado /
Na sensação
das ondas"),
três ("Ah,
afundado /
Num torpor
da imaginação, sem dúvida um pouco sono")
e 4 ("
Ah, todo eu
anseio /
Por esse momento
sem importância nenhuma"),
em que a quebra rítmica entre versos sugere ora a
instabilidade sentimental que o domina, ora a continuidade
no tempo dessa mesma sensação de desiquilíbrio, mas
também o baloiçar do navio nas águas do mar, numa imagem
simbólica a materializar a ideia de alguém que anda ao
acaso, a baloiçar e à deriva na vida.
As oposições ("A
minha vida
passada
misturou-se-me com a
futura" - v. 3
- e
"Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã"
- v. 9),
que denunciam o
quanto a vida do eu lírico evoluiu, mas sempre em direção a
um precipío. Com efeito, de um passado feliz, passamos para um
presente que se tolera tão só porque o futuro se antevê
bem pior. Por isso, resta a nítida sensação de que o
sujeito poético gostaria de anular o próprio tempo, dado
que dessa maneira a sua angústia seria atenuada.
O paradoxo (v.15), a expressar o sobressalto que vai na alma do eu
lírico, ainda que aparentemente se encontre numa
situação de tranquilidade, de semidormência, embalado
pelo baloiçar do navio.
A anáfora ("Aqueles
momentos em que
não tive importância nenhuma, /
Aqueles em que
compreendi todo o vácuo da existência sem
inteligência para o
compreender" -
vv.23-24), para
explicitar, de forma inequívoca, os momentos em que ele
se sentiu feliz porque viveu numa espécie de
inconsciência.
A comparação ("Em
cima da cadeira
como um livro que a sueca ali deixasse")
- v.12), através da qual o "eu" pretende realçar o seu
estatuto de indiferença ou anonimato - ele está ali "na
cadeira de convés" como uma coisa em que ninguém repara.
A apóstrofe ("...
ó Álvaro"
- v.25) e a enumeração polisssindética ("
E havia luar e mar e a solidão..."
-
v.25), com as quais o sujeito poético, enfatizando cada
um dos elementos dessa enumeração, num ambiente propício
à rememoração, à evocação da infância ("
E
havia luar
e mar...")
se compadece de si próprio, pois está consciente da sua
solidão ("...
e
solidão..."), da sua desventura, do tedium vitae
que carateriza o Álvaro de Campos da terceira fase da
sua evolução poética.
Nota 1:
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Nota 2:
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