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Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

ENCOSTEI-ME PARA TRÁS NA CADEIRA DE CONVÉS...

 

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se-me com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
 


 

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos –
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o

compreender


E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

 

(Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos,Lisboa, IN-CM, 1992)

 

Análise / Leitura orientada

 

QUESTIONÁRIO:


1. Divida a composição poética nas suas possíveis partes lógicas e faça uma síntese da mensagem poética de cada uma delas.

2. O sujeito evoca uma viagem de barco.
   
2.1. Caraterize o espaço físico representado e diga se ele e a sua envolvência formam um enquadramento favorável ao sujeito poético para proceder a uma reflexão sobre a sua própria existência, destacando algumas das caraterísticas que ele deixa transparecer ao longo da composição. Ilustre a resposta com ideias e/ou expressões do texto.
3. Interprete a comparação entre o "eu" e "um livro"( vv. 11-12), relacionando-a com a alusão à infância (vv.16-18).
4. Ao longo da composição, somos confrontados com a oposição eu / outros. Em conformidade com as ideias e expressões aí presentes, clarifique esse tipo de relação.
5. Identifique, exemplifique e explicite o valor de quatro recursos estilísticos,  que sirvam de suporte à ênfase dada pelo sujeito poético ao seu estado de recorrente angústia.
 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. A composição poética pode ser dividida em três partes lógicas. A primeira corresponde à primeira estrofe, onde o eu lírico procede ao enquadramento espacial (convés de um navio, cadeira, salão de fumo…) e introduz o tema que, mais à frente, irá desenvolver: a sua existência está a demoronar-se – “E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.”

Na segunda parte, que engloba as segunda, terceira e quarta estrofes, o sujeito poético, como que entorpecido pelo embalo do navio, de olhos fechados, foge da dura realidade do presente e do futuro, que antevê também dramático, e refugia-se no conforto de uma infância que considera ter sido vivida de forma inconsciente, porém feliz ("Quando brincava na quinta..." - v. 17). É que agora ele é um ser pensante, consciente (" .... e não sabia álgebra [agora sabe], / Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento" - vv. 17-18) e o pensar causa infelicidade, "incomoda como andar à chuva", como dizia o seu mestre Alberto Caeiro - dor de pensar, uma das linhas ideológicas mais recorrentes na poesia pessoana.

Na terceira parte, que compreende o último verso (monóstico), há como que um “acordar” do eu da enunciação, sendo posto um ponto final nessa viagem pelo tempo, a que sobrevém a constatação de que a sua vida irá continuar a ser preenchida pela solidão, por um vazio deprimente. A invocação final (“… ó Álvaro”) sugere a comiseração do eu lírico pela desventura e pelo tedium vitae do Álvaro de Campos da terceira fase da sua evolução poética.

 

2. O espaço físico evocado é o convés dum navio, numa viagem marítima, em noite de luar. A "cadeira de convés", em que o sujeito se representa recostado para trás, o "ruído do salão de fumo", onde "acabara a partida de xadrez" (vv. 4 e 5), a alusão à "sueca" (v. 12) são elementos indiciadores do ambiente requintado e cosmopolita dos paquetes de luxo. O movimento cadenciado das ondas, balouçando a cadeira de convés ("Ah, balouçado / Na sensação das ondas" - vv. 6-7), e a presença do luar (" E havia luar..." - v. 25) completam o quadro com a sugestão de um mar tranquilo. Estamos, pois, perante um ambiente propício à rememoração, à evocação da infância…

Ora, através dessa evocação, ele deixa transparecer algumas das suas caraterísticas: no passado, foi inconsciente, não teve responsabilidades nenhumas (“Quando brincava na quinta e não sabia álgebra”), foi um ser insignificante (“Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma”), mas feliz (“Ah, todo eu anseio por esse momento…”); no presente, vê-se momentaneamente reconfortado (“Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã”) e deixa-se levar pelo “torpor da imaginação”, esquecendo todas as contrariedades da vida; para o futuro, antevê o retorno à sua “(a)normalidade”: um ser abandonado, em vias de autodestruição (“E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício”), vazio, deprimido, invadido por um tedium vitae angustiante…

No final do poema, o sujeito poético expressa, reiteradamente, o seu anseio por aqueles momentos da sua vida em que, tal como na cadeira de convés, se entregou, sem preocupações, ao presente, vivido e apreciado enquanto tal.

O anseio do sujeito poético por estes momentos sem importância nenhuma – em que nada acontece e a própria consciência do "eu" está como que suspensa, porque semiadormecida ("momentos em que não tive importância nenhuma") – funda-se, nomeadamente, nas seguintes razões: tais instantes possibilitam ao "eu" o experienciar do próprio "vácuo da existência", sem o problematizar ou questionar dentro de si; esses momentos significam repentinas aproximações do "eu" adulto à sua infância perdida, em que viver fora, simplesmente, fruir em pleno cada instante.

 

3. A comparação entre o "eu" e "um livro" é legível de vários modos, nomeadamente:
- a casualidade banal do livro ali deixado é aproximada à sensação de estar ali, esquecido de si, liberto de cuidados e de obrigações;
- ao comparar-se com o livro deixado ali por acaso, o "eu" aponta para o seu estatuto de indiferença ou anonimato - ele está ali "na cadeira de convés" como uma coisa em que ninguém repara;
- ao comparar-se com o livro, que guarda saberes, inquietações, mundos alternativos, prontos a actualizarem-se na leitura, o sujeito afirma também que a consciência do tempo e do "eu" permanece guardada dentro de si e está apenas e temporariamente suspensa ("pelo menos neste momento").

 

 

A alusão à infância é suscitada pela analogia entre o estado de espírito de sujeito lírico – recostado na cadeira do convés – e a criança que fora "outrora". "Quando brincava na quinta", ignorante dos saberes e das convenções dos adultos, o "eu" da infância vivia o presente com a despreocupação da sua inconsciência infantil e da sua inocência. Essa pureza original perdida é como que recuperada naquele instante privilegiado de semiadormecimento que permite ao sujeito abandonar-se à simples vivência do momento.

 

4. A interjeição "Ah" ocorre, anaforicamente, nos versos 6, 8, 13, 19 e 22. Surgindo com uma alternância de intervalos quase regulares, esta anáfora marca, por um lado, o ritmo do poema - um ritmo embalador, baloiçante, incerto, como incerta é a sua vida… Por outro lado, pela associação aos adjetivos "balouçado", "embalado", "afundado", a repetição da interjeição "Ah" assinala um crescendo no estado de torpor a que o sujeito poético se entrega, o que lhe causa um estado de dormência, despoletador duma viagem pelos mundos da memória…

As duas ocorrências finais, em que esta anáfora se expande em unidades maiores ("Ah, todo eu anseio / Por esse momento", "Ah, todo eu anseio por esse momento"), tornam mais claro o sentimento contido na interjeição: o desejo de reencontro, por parte do eu da enunciação, com esse instante e "outros análogos" do passado.

A irregularidade formal da composição contribui grandemente para o ritmo irregular do poema, ora mais rápido, ora mais calmo, como que sugerindo o desequilíbrio, a instabilidade e o conflito interiores do sujeito poético.

 

5. De entre os vários recursos estilísticos, podem ser referidos os a seguir explicitados.

 

O transporte ou encavalgamento, nos primeiros versos das estrofes dois ("Ah, balouçado / Na sensação das ondas"), três ("Ah, afundado / Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono") e 4 (" Ah, todo eu anseio / Por esse momento sem importância nenhuma"), em que a quebra rítmica entre versos sugere ora a instabilidade sentimental que o domina, ora a continuidade no tempo dessa mesma sensação de desiquilíbrio, mas também o baloiçar do navio nas águas do mar, numa imagem simbólica a materializar a ideia de alguém que anda ao acaso, a baloiçar e à deriva na vida.

As oposições ("A minha vida passada misturou-se-me com a futura" - v. 3 - e "Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã" - v. 9), que denunciam o quanto a vida do eu lírico evoluiu, mas sempre em direção a um precipío. Com efeito, de um passado feliz, passamos para um presente que se tolera tão só porque o futuro se antevê bem pior. Por isso, resta a nítida sensação de que o sujeito poético gostaria de anular o próprio tempo, dado que dessa maneira a sua angústia seria atenuada.

O paradoxo (v.15), a expressar o sobressalto que vai na alma do eu lírico, ainda que aparentemente se encontre numa situação de tranquilidade, de semidormência, embalado pelo baloiçar do navio.

A anáfora ("Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma, / Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender" - vv.23-24), para explicitar, de forma inequívoca, os momentos em que ele se sentiu feliz porque viveu numa espécie de inconsciência.

A comparação ("Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse") - v.12), através da qual o "eu" pretende realçar o seu estatuto de indiferença ou anonimato - ele está ali "na cadeira de convés" como uma coisa em que ninguém repara.

A apóstrofe ("... ó Álvaro" - v.25) e a enumeração polisssindética (" E havia luar e mar e a solidão..." - v.25), com as quais o sujeito poético, enfatizando cada um dos elementos dessa enumeração, num ambiente propício à rememoração, à evocação da infância (" E havia luar e mar...") se compadece de si próprio, pois está consciente da sua solidão ("... e solidão..."), da sua desventura, do tedium vitae que carateriza o Álvaro de Campos da terceira fase da sua evolução poética.

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

 

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

Elaborado e publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

 

 

 

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Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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