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Fernando Pessoa

 

D. SEBASTIÃO, rei de Portugal

- Comentário ao poema -

 

D. Sebastião é a figura mais presente nesta obra de Pessoa, assumindo quase sempre um carácter mítico. Nesta composição, ele é a quinta quina e como acontece, aliás, curiosamente, nas outras composições que ilustram cada uma das quinas, o sujeito poético como que reencarna na figura do rei e apresenta-nos uma visão interna dos acontecimentos e da alma humana.

 

Aqui, D. Sebastião define-se como “louco”, reforçando o seu estado de loucura com uma diácope (= repetição da mesma palavra, com uma de permeio), com a repetição do lexema “louco”, intercalado pelo advérbio de afirmação “sim”. Mas qual a explicação para toda essa loucura? Antes de mais, convém dizer que “loucura” não deve ser vista pejorativamente, antes como sinónimo de sonho, de uma vontade intrépida de ir mais além. Posto isto, essa “loucura” deriva da sua ânsia de conseguir “grandeza”, a qual não depende da “Sorte”, antes de uma procura incessante e de um lavor constante.

 

Assim, D. Sebastião não se deixou levar pela “certeza” ou, se quisermos, pelas certezas, pelas verdades feitas, que invariavelmente levam ao seguidismo, ao comodismo, à ausência de esforço, à aceitação do palpável; no fundo, à mediocridade que caracteriza a quase totalidade dos seres humanos. Ele, não, ele quis acrescentar à “certeza” um pouco de loucura, de Sonho, pois é este que faz com que a humanidade dê o salto em frente, em direcção ao desconhecido, ao incerto, ao misterioso, ao mundo dos mitos e dos medos, mas, concomitantemente, a um mundo excitante e sedutor.

 

É claro que todos aqueles que querem sair do normativo acabam por sofrer as consequências das suas infracções e D. Sebastião também não passou incólume a isso. Por isso morreu na batalha de Alcácer Quibir, na luta pela concretização da sua “loucura” – “Por isso onde o areal está (repare-se na perífrase, porque todo esse segmento frásico quer dizer deserto, África) / Ficou meu ser que houve”, ou seja, o D. Sebastião, figura histórica, pagou com a vida o seu acto de rebeldia contra os estereótipos. Porém, o outro, o D. Sebastião mítico, o Sonhador, o “louco”, esse não morrerá, enquanto houver quem acredite na sua vinda como o salvador da pátria ou enquanto ele encerrar uma lição de vida, uma “loucura” do ideal, um exemplo a seguir – “não o que há”.

 

Tudo o que fica dito corresponde à primeira parte do poema, que está contida, portanto, na primeira quintilha, onde, em termos muito sintéticos, é-nos apresentada a figura de D. Sebastião, encarada na sua dupla faceta: por um lado, a histórica, a que faz parte do passado, com o seu desaparecimento ou morte em Alcácer Quibir (“Ficou meu ser que houve” – veja-se o verbo conjugado no pretérito perfeito e o eufemismo); por outro lado, a mítica (“não o que há”). Note-se que forma verbal no presente do indicativo (“há”) dá a ideia de realidade, sugerindo, associada ao carácter peremptório do advérbio de negação “não”, que o D. Sebastião mítico continua a ser bem real.



 

Alcácer Quibir : Reconhecimento do cadáver de D. Sebastião.
ca. 1888, óleo sobre cartão, 225 x 335 mm
Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, Portugal.
 

A segunda parte da composição é formada pela segunda quintilha, no decurso da qual D. Sebastião, pela voz do eu lírico, faz uma espécie de apelo a todas as pessoas, e aos portugueses em particular, para que aproveitem a sua lição de ideal. É que só a loucura, o sonho, libertará o ser humano da sua carnalidade. Efectivamente, é o sonho que dá sentido à vida. Sem sonhos, o homem não passará de uma besta sadia (porque é um animal com saúde…), de um cadáver adiado (vive, porque tem saúde, fisicamente, mas espiritualmente está morto, pois a “loucura” já não vivifica mais a sua alma), que se limita exclusivamente a cumprir a sua missão animalesca, a sua função de manutenção da espécie – procriar.

 

Frise-se que a interrogação retórica, com que termina o poema, faz vir ao de cima essa verdade insofismável. Nem sequer é necessário dar uma resposta, tão evidente é ela… Por isso, a “loucura” não deve ser só pertença do herói, do artista, do pensador, mas de todos os que tentam realizar um grande ou pequeno projecto, desprezando o conforto de uma vida cómoda e rotineira.

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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