D. Sebastião é a figura
mais presente nesta obra de Pessoa, assumindo quase
sempre um carácter mítico. Nesta composição, ele é a
quinta quina e como acontece, aliás, curiosamente, nas
outras composições que ilustram cada uma das quinas, o
sujeito poético como que reencarna na figura do rei e
apresenta-nos uma visão interna dos acontecimentos e da
alma humana.
Aqui, D. Sebastião
define-se como “louco”, reforçando o seu estado
de loucura com uma diácope (= repetição da mesma
palavra, com uma de permeio), com a repetição do
lexema “louco”, intercalado pelo advérbio de
afirmação “sim”. Mas qual a explicação para toda
essa loucura? Antes de mais, convém dizer que
“loucura” não deve ser vista pejorativamente,
antes como sinónimo de sonho, de uma vontade
intrépida de ir mais além. Posto isto, essa
“loucura” deriva da sua ânsia de conseguir
“grandeza”, a qual não depende da “Sorte”, antes
de uma procura incessante e de um lavor
constante.
Assim, D. Sebastião não se
deixou levar pela “certeza” ou, se quisermos, pelas
certezas, pelas verdades feitas, que invariavelmente
levam ao seguidismo, ao comodismo, à ausência de
esforço, à aceitação do palpável; no fundo, à
mediocridade que caracteriza a quase totalidade dos
seres humanos. Ele, não, ele quis acrescentar à
“certeza” um pouco de loucura, de Sonho, pois é este que
faz com que a humanidade dê o salto em frente, em
direcção ao desconhecido, ao incerto, ao misterioso, ao
mundo dos mitos e dos medos, mas, concomitantemente, a
um mundo excitante e sedutor.
É claro que todos aqueles
que querem sair do normativo acabam por sofrer as
consequências das suas infracções e D. Sebastião também
não passou incólume a isso. Por isso morreu na batalha
de Alcácer
Quibir, na luta
pela concretização da sua “loucura” – “Por isso onde o
areal está (repare-se na perífrase, porque todo esse
segmento frásico quer dizer deserto, África) / Ficou meu
ser que houve”, ou seja, o D. Sebastião, figura
histórica, pagou com a vida o seu acto de rebeldia
contra os estereótipos. Porém, o outro, o D. Sebastião
mítico, o Sonhador, o “louco”, esse não morrerá,
enquanto houver quem acredite na sua vinda como o
salvador da pátria ou enquanto ele encerrar uma lição de
vida, uma “loucura” do ideal, um exemplo a seguir – “não
o que há”.
Tudo o que fica dito
corresponde à primeira parte do poema, que está contida,
portanto, na primeira quintilha, onde, em termos muito
sintéticos, é-nos apresentada a figura de D. Sebastião,
encarada na sua dupla faceta: por um lado, a histórica,
a que faz parte do passado, com o seu desaparecimento ou
morte em Alcácer Quibir (“Ficou meu ser que houve” –
veja-se o verbo conjugado no pretérito perfeito e o
eufemismo); por outro lado, a mítica (“não o que há”).
Note-se que forma verbal no presente do indicativo
(“há”) dá a ideia de realidade, sugerindo, associada ao
carácter peremptório do advérbio de negação “não”, que o
D. Sebastião mítico continua a ser bem real.
Alcácer Quibir :
Reconhecimento do cadáver de D. Sebastião.
ca. 1888, óleo sobre cartão, 225 x 335 mm
Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, Portugal.
A segunda parte da
composição é formada pela segunda quintilha, no decurso
da qual D. Sebastião, pela voz do eu lírico, faz uma
espécie de apelo a todas as pessoas, e aos portugueses
em particular, para que aproveitem a sua lição de ideal.
É que só a loucura, o sonho, libertará o ser humano da
sua carnalidade. Efectivamente, é o sonho que dá sentido
à vida. Sem sonhos, o homem não passará de uma besta
sadia (porque é um animal com saúde…), de um cadáver
adiado (vive, porque tem saúde, fisicamente, mas
espiritualmente está morto, pois a “loucura” já não
vivifica mais a sua alma), que se limita exclusivamente
a cumprir a sua missão animalesca, a sua função de
manutenção da espécie – procriar.
Frise-se que a
interrogação retórica, com que termina o poema, faz vir
ao de cima essa verdade insofismável. Nem sequer é
necessário dar uma resposta, tão evidente é ela… Por
isso, a “loucura” não deve ser só pertença do herói, do
artista, do pensador, mas de todos os que tentam
realizar um grande ou pequeno projecto, desprezando o
conforto de uma vida cómoda e rotineira.
Publicado por
Joaquim Matias da Silva
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