Camilo Castelo Branco
Fernando Pessoa
José Saramago
Sttau Monteiro
Outros
Fernando Pessoa

 

O INFANTE

- Comentário ao poema -

“O Infante” é um dos poemas mais conhecidos e mais interessantes da Mensagem. Trata-se de uma obra de engenharia literária extraordinária, como o demonstrará, um pouco, a breve análise que de seguida se apresenta.

Esta composição pode ser dividida em três partes lógicas. A primeira delas corresponde ao primeiro verso, que é um mote ou uma frase aforística, onde está contida a tese, tese essa  em que a tripartição também é bem notória,   já que   é  constituída  por  três

segmentos linguísticos: “Deus quer”, “o homem sonha” e “a obra nasce”. Repare-se que nestes três segmentos há três elementos hierarquizados, mas que estabelecem entre si uma relação de dependência e de complementaridade – para que uma obra nasça é necessário que o homem sonhe e que Deus tenha querido. No vértice superior deste triângulo mágico, e que se pretende dinâmico, está Deus; depois, nos vértices inferiores, temos o homem e, finalmente, a obra. Qualquer um deles, porém, só funciona em função dos outros…

 

A segunda parte engloba os três restantes versos da primeira quadra e a segunda quadra. Nela procura-se desenvolver a tese, razão por que também ela pode ser subdividida em três momentos, cada um deles reportando-se aos três elementos da tese.

Assim, num primeiro momento, que integra os versos 2 e 3, explica-se o que Deus quis - “que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse, já não separasse.”; num segundo momento, é dito que Deus, para satisfazer o seu desejo, sagrou o Infante (“sagrou-te” – repare-se que o pronome pessoal “te” tem como referente o Infante e que a forma verbal “sagrou”, para além de dignificar esse mesmo Infante, que até foi abençoado por Deus, sendo, pois, o Escolhido, e com ele todo o povo português, faz lembrar ainda Sagres, a localidade algarvia de onde partiam as naus para as Descobertas e onde existia uma Escola Náutica fundada exactamente pelo Infante D. Henrique); finalmente, num terceiro momento, que começa em “e foste desvendando a espuma” e se prolonga até ao fim da segunda quadra, está referenciada a obra – gradualmente, o Infante (herói individual) e, por extensão, todo o povo português (herói colectivo) foram decifrando os mistérios do mar, até que, “de repente”, numa espécie de relevação, surgiu “a terra inteira”, “redonda, do azul profundo”. Estava desvendado o mistério!... Saliente-se a predominância da cor branca (“espuma”, “branca”, “clareou”), símbolo da pureza e da perfeição (o império que os portugueses formaram era perfeito e ainda puro) e da cor “azul profundo”, símbolo do mistério, tal como a “espuma” (v. 4), que, entretanto, foi desvendado. Um destaque especial também para o adjectivo “redonda” (v. 8), que representa a unidade e a perfeição, já que o círculo é a figura geométrica perfeita, por excelência. Também a terra é perfeita, porque é obra de Deus, sendo esse o motivo pelo qual a entidade divina queria que “a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse, já não separasse” – a ideia de unidade aparece aqui enfatizada.

 

A terceira parte do poema engloba a terceira quadra e assume-se como uma espécie de síntese, sendo nela salientada a ideia de que Deus incumbiu o Infante e os portugueses de cumprirem uma missão, missão essa que consistia, no essencial, em fazer com que o mar fosse fonte união e não de separação – “quem te sagrou criou-te português. / Do mar e nós em ti nos deu sinal”.

 

Ora, os portugueses cumpriram esse desejo de Deus (“Cumpriu-se o Mar”), só que o império formado se desfez (“e o Império se desfez”), dado que estava assente em valores materiais, em vez de alicerçado em valores espirituais, imortais. Por isso é que é necessário “cumprir-se Portugal” (Senhor, falta cumprir-se Portugal”), ou seja, é preciso retomar a tese inicial.

 

É urgente que Deus volte a querer, que o homem volte a sonhar, para que a obra volte a nascer, mas agora despida de toda a materialidade, caso contrário o tão ambicionado Quinto Império, o Império da Luz, da cultura, da universalidade e unidade autênticas, da Perfeição, nunca mais será alcançado.

 

Como vimos, está subentendida nesta composição poética, como noutros textos pessoanos, aliás, a dialéctica hegeliana – tese (primeira parte), antítese (segunda parte) e síntese (terceira parte). Convém, no entanto, reiterar que a síntese não foi ainda atingida, porque “falta cumprir-se Portugal”. Daí a premência de se voltar ao início. E é neste sentido que este texto poético tem uma estrutura circular e dinâmica.
 

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

 

 

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

====================================================

 

Talvez também tenha interesse em ver comentáros de poemas e estudos integrais de todas as obras e autores que fazem parte dos programas de Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao 12.º anos de escolaridade.

Consulte então os seguintes menus: Fernando Pessoa (poesia ortónima e heterónima), O Memorial do Convento (José Saramago), Felizmente Há Luar, Frei Luís de Sousa, Um Auto de Gil Vicente e Folhas Caídas (Almeida Garrett), Amor de Perdição (Camilo Castelo Branco), Antero de Quental, António Nobe, Sermão de Santo António aos Peixes (Pe. António Vieira), Bocage, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Os Maias e A Aia (Eça de Queirós), Eugénio de Andrade, Fernão Lopes, A Farsa de Inês Pereira (Gil Vicente), O Render dos Heróis (José Cardoso Pires), Camões lírico e Camões épico, Miguel Torga, Sophia Andresen, Aparição (Vergílio Ferreira), as Cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Consulte ainda as rubricas de Funcionamento da Língua.

Boas leituras e bom estudo.

 

Voltar

  Início da página

 

© Joaquim Matias  2010

 

 

 

 Páginas visitadas