Camilo Castelo Branco
Fernando Pessoa
José Saramago
Sttau Monteiro
Outros
Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

II. HORIZONTE (s.d.)

HORIZONTE

 

   

 

 

 

 

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Esplendia sobre as naus da iniciação.

 

Linha severa da longínqua costa -

 

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.

 

 

 

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed., 1972).

 

 

Comentário orientado ao poema

 

QUESTIONÁRIO:


1. Indique o tema do texto e relacione-o com o seu título.
2. Apresente as partes em que se estrutura o poema quanto ao sentido. Justifique.
3. "Desvendadas a noite e a cerração" ... (v. 3)
3. Explicite o significado das palavras noite e cerração, integradas nesta expressão.
4. Faça o levantamento dos recursos estilísticos mais expressivos, realçando essa sua expressividade.
5. Aponte as razões da integração do poema na segunda parte da Mensagem e situe  essa obra no universo poético pessoano.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. O tema do texto é a descoberta e o contacto dos portugueses com mares e terras longínquos e desconhecidos, estando esse tema presente na interpretação do título como projeto de ir mais longe, mais além, rumo ao desconhecido, por detrás da linha do HORIZONTE. Esse mundo amedrontava ("Ó mar anterior a nós, teus medos" - v. 1), como tudo o que é desconhecido, mas também por isso mesmo seduzida as vontades, despertando o desejo de saber o que havia fora da linha de conforto em que qualquer ser humano gosta de se escudar.

 


 

2. O desenvolvimento temático, no poema, estrutura-se em três partes. A primeira parte abarca a primeira sextilha, ao longo da qual o sujeito poético apresenta a conclusão a que se chegou depois de os navegantes portugueses terem empreendido a viagem marítima, desbravando mares desconhecidos. As descobertas exigiram sacrifícios, causaram sofrimento ("Desvendadas a noite e a cerração, / As tormentas passadas e o mistério" - vv. 3-4), mas valeram a pena porque por detrás dos "medos" havia corais, praias e arvoredos (v. 2), ou seja, a "noite e a cerração" (símbolos de mistério) revelaram, afinal, a existência de coisas bem concretas e belas!... Repare-se na predominância do pretérito imperfeito ("tinham", abria", "´Splendia"), a evidenciar a ideia de que as descobertas do passado tiveram uma continuidade no tempo, até se fazer das sombras ("noite") luz ("´Splendia"). Note-se, ainda, que o vocabulário utilizado tem uma carga negativa, por um lado ("medos", noite", "cerração", "tormentas", "mistério"), sugerindo o oculto,i o desconhecimento da verdade, a ignorância em que vivia o mundo anterior aos Descobrimentos, e positiva, por outro lado ("... coral e praias e arvoredo", "... flor...", "... aves, flores", "árvore", "praia", "ave", "fonte", "beijos merecidos",  "Verdade"), para realçar as ideias de que, afinal, os nautas portugueses, ao princípio receosos, acabaram, depois das descobertas, por desvendar um mundo cheio de beleza e viram, por isso mesmo, os seus esforços serem recompensados.

 

 

A segunda parte, que engloba a segunda sextilha, apresenta a visão do mundo novo. Essa visão é captada sob a ótica dos marinheiros, de forma progressiva  e gradual, do longe para o perto. Vejamos: quando a nau se aproxima, são visualizadas as árvores que se disseminam pela encosta (sensação visual - maior distância); mais perto, começam a distinguir-se as cores e os sons tornam-se audíveis (sensações visual e auditiva, uma e outra implicando uma maior proximidade - só estando mais próximo é possível distinguir-se claramente as cores e escutar os sons); finalmente, no desembarque, na vizinhança das coisas, estas deixam de ser apenas abstratizadas ("árvores", "sons" e "cores") para passarem a ser eminentemente concretas, mais particularizadas ("aves", "flores").

 


 

A terceira parte compreende a última estrofe, onde o sujeito poético apresenta a  definição de "sonho". Porquê? Porque os Descobrimentos dos séculos XV e XVI (constituem o grande contributo dos portugueses para a História da humanidade) surgem como resultado ou consequência do sonho. Temos, pois, nesta terceira parte, a interpretação simbólica do ato de descobrir, que mais não é do que o impulso para o conhecimento. Efetivamente, foi por sonharem que os Portugueses rasgaram o "Horizonte", revelando novos mundos ao mundo e dando a conhecer novos povos, novas línguas, novas culturas aos países do velho continente, praticamente limitados até então aos bafejos dos ventos civilizacionais do Mare Nostrum. Mas o que é o sonho para o eu lírico? É  "... ver as formas invisíveis / Da distância imprecisa" (vv. 13-14), ou seja, é ver por antecipação, é ir mais além do que aquilo que já é conhecido e aceite pelo comum das pessoas, é sentir e viver a realidade daquilo que, à partida, ainda é irrealidade. E para que essa irrealidade se torne real, isto é, para que o sonho se concretize, são necessários vários ingredientes enumerados nesta estrofe: a esperança (não adianta sonhar se não houver esperança em concretizar o que é sonhado), a vontade (é necessário ultrapassar os limites da vontade humana para transformar o irreal em real) e a busca (a decifração do incógnito  implica um trabalho contínuo e, não raro, sacrifícios de vária ordem). Se esses ingredientes forem aplicados na medida certa, o sonho realizar-se-á e a Verdade surgirá em toda a sua plenitude, consubstanciando um valor de recompensa final, simbolicamente representada nos elementos da enumeração "A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -" (v. 17).


3. "Noite" e "cerração" significam o desconhecimento e o desconhecido. Com efeito, a "noite" remete para as trevas, o obscurantismo em que viviam os povos antes  das "naus da iniciação" abrirem "... em flor o Longe, e o Sul sidério" (v. 5). É ainda símbolo da morte que ameaçava constantemente os nautas portugueses e do poder maldito, do oceano por achar. Porém, a noite não deixa de ser também o tempo das germinações e do prenúncio da revolução geográfica, científica, ideológica e conceptual que se seguiria aos Descobrimentos. A "cerração", por seu lado, representa o que está escondido, o que ainda é desconhecido, mas que tem vida própria depois de desvandado.

 


4. De entre os vários recursos estilísticos, podem ser referidos: a apóstrofe ("Ó mar anterior a nós... - v. 1) que centraliza todo o discurso poético no mar antes e depois das Descobertas; a enumeração polissindética ("Tinham coral e praias e arvoredos" - v. 2), para destacar todas as coisas belas que existiam para além da linha do Horizonte, contrastando com os  "medos" sentidos face ao desconhecido; a imagem metafórica ("Abria em flor o Longe..." - v. 5), que sugere o momento feliz da revelação do desconhecido; a gradação em "se aproxima" (v. 8) — "mais perto" (v. 10) — "no desembarcar" (v. 11), que traduz o movimento de aproximação (do longe para o perto)progressiva da costa efetuado pelas "naus da iniciação" e as subsequentes revelações que iam sendo feitas ("árvores" - v. 8; "sons e cores" - v. 9; "aves, flores" - v.10); a enumeração assindética ("A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -" - v. 17), onde são destacados cada um dos elementos (todos eles com uma carga semântica de grande positividade, frise-se) que constituem a recompensa dos que ousaram sonhar e enfrentar o mundo misterioso, enigmático; a metáfora e o oxímoro  em "O sonho é ver as formas invisíveis" (v. 13) com os quais o sujeito poético tenta definir o sonho, identificando-o com algo ("formas Invisíveis") que em si mesmo é concraditório ou até paradoxal (há formas e estas são invisíveis?!...), o que sublinha, naturalmente, a dificuldade em definir algo que não se rege pelos parâmetros da objetividade.

Também podem ser mencionadas as ressonâncias em /-on/, disseminadas ao longo da composição - "Horizonte" (2 vezes), "Longe" (2 vezes), "longínqua", "onde" (2 vezes), "sons", "sonho", "vontade", "fonte", que funcionam como uma espécie de eco que se prolonga na distância, acentuando a ideia de mistério e de lonjura; os sons fechados e nasais, mormente na primeira estrofe, que conferem ao texto um ritmo mais arrastado (também as viagens marítimas se arrastavam, fruto das condições de navegação), sugerindo igualmente o mistério e as dificuldades sentidas pelos portugueses para decifrarem esse mesmo mistério; e as aliterações em /-s/, em /-v/ e em /-f/, a sugerirem o movimento das "naus da iniciação" contra o vento (= obstáculos), desafiando persistentemente a "noite e a cerração", rumo à desvendação do "Longe", do mundo desconhecido.
 

 

5. A avaliar pelas diversas referências à expansão marítima, presentes no poema, pode concluir-se pela sua integração na segunda parte da Mensagem — "Mar Português". Com efeito, os Portugueses foram senhores do mar. Ora, é à volta dos descobrimentos e das figuras que mais se destacaram neste feito notável que gira toda a segunda parte da Mensagem, que é a parte mais épica da obra, até porque são referidos, aqui, personagens e factos dos descobrimentos portugueses, sempre encarados na perspetiva de missão que competia a Portugal cumprir. É dado particular destaque, a exemplo, aliás, do que acontece ao longo de toda a obra, à projeção universal dessas personagens  e  desses   factos  e não às consequências imediatas dos mesmos.

Entretanto, a Mensagem representa, no universo poético pessoano, uma linha temática do  nacionalismo, do sebastianismo e uma linha estética simbolista. O desejo de Fernando Pessoa de escrever uma obra épica manifestou-se desde muito cedo. Talvez influenciado por correntes messiânicas e saudosistas e pelo seu espírito megalómano que o levou a ver-se como um super-Camões, uma espécie de profeta de um novo império (o Quinto Império Português), Pessoa, já em Setembro de 1912 (tinha ele 24 anos) escrevia na revista A Águia: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.” Nesta frase tornam-se já bem evidentes algumas ideias que serão, depois, desenvolvidas na Mensagem: a sobrevalorização do povo português, um povo predestinado a grandes efeitos, a importância do sonho (mito) para se conseguir alcançar aquilo que se deseja e a origem espiritual, divina, do novo império.

 

Escrito e publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

 

====================================================

 

Talvez também tenha interesse em ver comentáros de poemas e estudos integrais de todas as obras e autores que fazem parte dos programas de Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao 12.º anos de escolaridade.

Consulte então os seguintes menus: Fernando Pessoa (poesia ortónima e heterónima), O Memorial do Convento (José Saramago), Felizmente Há Luar, Frei Luís de Sousa, Um Auto de Gil Vicente e Folhas Caídas (Almeida Garrett), Amor de Perdição (Camilo Castelo Branco), Antero de Quental, António Nobe, Sermão de Santo António aos Peixes (Pe. António Vieira), Bocage, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Os Maias e A Aia (Eça de Queirós), Eugénio de Andrade, Fernão Lopes, A Farsa de Inês Pereira (Gil Vicente), O Render dos Heróis (José Cardoso Pires), Camões lírico e Camões épico, Miguel Torga, Sophia Andresen, Aparição (Vergílio Ferreira), as Cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Consulte ainda as rubricas de Funcionamento da Língua.

Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

Voltar

  Início da página

 

© Joaquim Matias 2015

 

 

 

 Páginas visitadas