Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Esplendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António
Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed., 1972).
Comentário orientado ao poema
QUESTIONÁRIO:
1.
Indique o tema do texto e relacione-o com o seu título.
2.
Apresente as partes em que se estrutura o poema quanto
ao sentido. Justifique.
3.
"Desvendadas a noite e a cerração" ... (v. 3)
3.
Explicite o significado das palavras noite
e cerração, integradas nesta expressão.
4.
Faça o levantamento dos recursos estilísticos mais
expressivos, realçando essa sua expressividade.
5.
Aponte as razões da integração do poema na segunda parte
da Mensagem e situe essa obra no universo poético
pessoano.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
O tema do texto é a descoberta e o contacto dos
portugueses com mares e terras longínquos e
desconhecidos, estando esse tema presente na
interpretação do título como projeto de ir mais longe,
mais além, rumo ao desconhecido, por detrás da linha do
HORIZONTE. Esse mundo amedrontava ("Ó mar anterior a nós, teus medos"
- v. 1), como tudo o que é desconhecido, mas também por
isso mesmo seduzida as vontades, despertando o desejo de
saber o que havia fora da linha de conforto em que
qualquer ser humano gosta de se escudar.
2.
O desenvolvimento temático, no poema, estrutura-se em
três partes. A primeira parte abarca a primeira
sextilha, ao longo da qual o sujeito poético apresenta a
conclusão a que se chegou depois de os navegantes
portugueses terem empreendido a viagem marítima,
desbravando mares desconhecidos. As descobertas exigiram
sacrifícios, causaram sofrimento ("Desvendadas a noite e
a cerração, / As tormentas passadas e o mistério" - vv.
3-4), mas valeram a pena porque por detrás dos "medos"
havia corais, praias e arvoredos (v. 2), ou seja, a
"noite e a cerração" (símbolos de mistério) revelaram,
afinal, a existência de coisas bem concretas e belas!...
Repare-se na predominância do pretérito imperfeito
("tinham", abria", "´Splendia"), a evidenciar a ideia de
que as descobertas do passado tiveram uma continuidade
no tempo, até se fazer das sombras ("noite") luz
("´Splendia"). Note-se, ainda, que o vocabulário
utilizado tem uma carga negativa, por um lado ("medos",
noite", "cerração", "tormentas", "mistério"), sugerindo o
oculto,i o
desconhecimento da verdade, a ignorância em que vivia o
mundo anterior aos Descobrimentos, e positiva, por outro
lado ("... coral e praias e arvoredo", "... flor...",
"... aves, flores", "árvore", "praia", "ave", "fonte", "beijos merecidos",
"Verdade"), para realçar as ideias de que, afinal, os
nautas portugueses, ao princípio receosos, acabaram,
depois das descobertas, por desvendar um mundo cheio de
beleza e viram, por isso mesmo, os seus esforços serem
recompensados.
A segunda parte, que engloba a segunda sextilha,
apresenta a visão do mundo novo. Essa visão é captada
sob a ótica dos marinheiros, de forma progressiva
e gradual, do longe para o perto. Vejamos: quando a nau
se aproxima, são visualizadas as árvores que se
disseminam pela encosta (sensação visual - maior
distância); mais perto, começam a distinguir-se as cores
e os sons tornam-se audíveis (sensações visual e
auditiva, uma e outra implicando uma maior proximidade -
só estando mais próximo é possível distinguir-se
claramente as cores e escutar os sons); finalmente, no
desembarque, na vizinhança das coisas, estas deixam de
ser apenas abstratizadas ("árvores", "sons" e "cores")
para passarem a ser eminentemente concretas, mais
particularizadas ("aves", "flores").
A terceira parte compreende a última estrofe, onde o
sujeito poético apresenta a definição de "sonho".
Porquê? Porque os Descobrimentos dos séculos XV e XVI (constituem o
grande contributo dos portugueses para a História da
humanidade) surgem como resultado ou consequência do
sonho. Temos, pois, nesta terceira parte, a
interpretação simbólica do ato de descobrir, que mais
não é do que o impulso para o conhecimento.
Efetivamente, foi por sonharem que os Portugueses
rasgaram o "Horizonte", revelando novos mundos ao mundo e dando a conhecer novos povos,
novas línguas, novas culturas aos países do velho
continente, praticamente limitados até então aos bafejos
dos ventos civilizacionais do
Mare Nostrum. Mas o que é o sonho para o eu lírico?
É "... ver as formas invisíveis / Da distância
imprecisa" (vv. 13-14), ou seja, é ver por
antecipação, é ir mais além do que
aquilo que já é conhecido e aceite pelo comum das
pessoas, é sentir e viver a realidade daquilo que, à
partida, ainda é irrealidade. E para que essa irrealidade
se torne real, isto é, para que o sonho se concretize,
são necessários vários ingredientes enumerados
nesta estrofe: a
esperança
(não adianta sonhar se
não houver esperança em concretizar o que é sonhado), a
vontade
(é necessário ultrapassar os limites da
vontade humana para transformar o irreal em real) e a
busca
(a decifração do incógnito implica um
trabalho contínuo e, não raro, sacrifícios de vária
ordem). Se esses ingredientes forem aplicados na
medida certa, o sonho realizar-se-á e a Verdade surgirá
em toda a sua plenitude, consubstanciando um valor de
recompensa
final, simbolicamente representada nos elementos da
enumeração "A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -"
(v. 17).
3.
"Noite" e "cerração" significam o desconhecimento e o
desconhecido. Com efeito, a "noite" remete para as
trevas, o obscurantismo em que viviam os povos antes
das "naus da iniciação" abrirem "... em flor o Longe, e o Sul sidério"
(v. 5).
É ainda símbolo da morte que ameaçava constantemente os
nautas portugueses e do poder maldito, do
oceano por achar. Porém, a noite não deixa de ser também
o tempo das germinações e do prenúncio da revolução
geográfica, científica, ideológica e conceptual que se
seguiria aos Descobrimentos. A "cerração", por seu lado,
representa o que está escondido, o que ainda é
desconhecido, mas que tem vida própria depois de
desvandado.
4.
De entre os vários recursos estilísticos, podem ser
referidos: a
apóstrofe
("Ó mar anterior a nós... - v. 1) que centraliza todo o
discurso poético no mar antes e depois das Descobertas;
a
enumeração polissindética
("Tinham coral e praias e arvoredos" - v. 2), para
destacar todas as coisas belas que existiam para além da
linha do Horizonte, contrastando com os "medos"
sentidos face ao desconhecido; a
imagem metafórica
("Abria
em flor o Longe..." - v. 5), que sugere o momento feliz
da revelação do desconhecido; a
gradação
em "se aproxima" (v. 8) — "mais perto" (v. 10) — "no
desembarcar" (v. 11), que traduz o movimento de
aproximação (do longe para o perto)progressiva da costa
efetuado pelas "naus da iniciação" e as subsequentes
revelações que iam sendo feitas ("árvores" - v. 8; "sons
e cores" - v. 9; "aves, flores" - v.10); a
enumeração assindética
("A
árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -" - v. 17),
onde são destacados cada um dos elementos (todos eles com uma
carga semântica de grande positividade, frise-se) que
constituem a recompensa dos que ousaram sonhar e
enfrentar o mundo misterioso, enigmático; a
metáfora e o oxímoro
em "O sonho é ver as formas invisíveis" (v. 13) com os
quais o sujeito poético tenta definir o sonho,
identificando-o com algo ("formas Invisíveis") que em si
mesmo é concraditório ou até paradoxal (há formas e
estas são invisíveis?!...), o que sublinha, naturalmente, a
dificuldade em definir algo que não se rege pelos
parâmetros da objetividade.
Também podem ser mencionadas as
ressonâncias
em /-on/, disseminadas ao longo da composição -
"Horizonte" (2 vezes), "Longe" (2 vezes), "longínqua",
"onde" (2 vezes), "sons", "sonho", "vontade", "fonte",
que funcionam como uma espécie de eco que se prolonga na
distância, acentuando a ideia de mistério e de lonjura; os
sons fechados
e
nasais,
mormente na primeira estrofe, que conferem ao texto um
ritmo mais arrastado (também as viagens marítimas se
arrastavam, fruto das condições de navegação), sugerindo igualmente o mistério e
as dificuldades sentidas pelos portugueses para
decifrarem esse mesmo mistério; e as
aliterações
em /-s/, em /-v/ e em /-f/, a sugerirem o movimento das
"naus da iniciação" contra o vento (= obstáculos),
desafiando persistentemente a "noite e a cerração", rumo
à desvendação do "Longe", do mundo desconhecido.
5.
A avaliar pelas diversas referências à expansão
marítima, presentes no poema, pode concluir-se pela sua
integração na segunda parte da Mensagem — "Mar
Português". Com efeito, os Portugueses foram
senhores do mar. Ora, é à volta dos descobrimentos e das
figuras que mais se destacaram neste feito notável que
gira toda a segunda parte da Mensagem, que é a parte mais
épica da obra, até porque são referidos, aqui,
personagens e factos dos descobrimentos portugueses, sempre encarados na
perspetiva de missão que competia a Portugal cumprir. É dado particular
destaque, a exemplo, aliás, do que acontece ao longo de toda a obra, à projeção
universal dessas personagens e desses factos e não às consequências
imediatas dos mesmos.
Entretanto, a Mensagem representa, no universo poético pessoano, uma
linha temática do nacionalismo, do
sebastianismo e
uma linha estética simbolista. O desejo de
Fernando Pessoa de escrever uma obra épica manifestou-se desde muito cedo. Talvez
influenciado por correntes messiânicas e saudosistas e pelo seu espírito
megalómano que o levou a ver-se como um super-Camões, uma espécie de profeta de
um novo império (o Quinto Império Português), Pessoa, já em Setembro de 1912
(tinha ele 24 anos) escrevia na revista A Águia: “E a nossa grande Raça
partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são
construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo
destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo,
realizar-se-á divinamente.” Nesta frase tornam-se já bem evidentes algumas
ideias que serão, depois, desenvolvidas na Mensagem: a sobrevalorização
do povo português, um povo predestinado a grandes efeitos, a importância do
sonho (mito) para se conseguir alcançar aquilo que se deseja e a origem
espiritual, divina, do novo império.
Escrito e publicado por
Joaquim Matias da Silva
Nota 1:
se tiver dúvidas e quiser rever os recursos
estilísticos, abra
esta página.
Nota 2:
ver
aqui
análises ou leituras orientadas de outros poemas de
Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Talvez também tenha interesse em ver comentáros
de poemas e estudos integrais de todas as obras e
autores que fazem parte dos programas de
Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao
12.º anos de escolaridade.