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Fernando Pessoa
 

Análise do poema

 

III. PADRÃO (13-9-1918)

PADRÃO (1)

 

 

 

 

Diogo Cão (séc. XV), no Congo (1486?)

 

 

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu,
Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas
Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

 

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10.ª ed., 1972).

 

(1) Padrão: marco de pedra com emblemas simbólicos, que assinalava a posse de Portugal sobre as terras descobertas. Era erguido pelos navegadores portugueses nas terras que iam descobrindo, tendo como emblemas a cruz e as quinas.

 

 

Análise / Leitura orientada

 

QUESTIONÁRIO:

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas:
1. Indique as funções atribuídas ao "padrão" neste poema.
2. Explicite as relações de sentido que o primeiro e o quinto versos estabelecem entre si.
3. Analise a importância que os vocábulos e expressões referentes à navegação assumem no texto.
4. Comente o significado dos versos: "Que o mar com fim será grego ou romano:/ O mar sem fim é português" (vv. 11-12).
5. Descreva o retrato que o sujeito poético faz de si mesmo.

6. Proceda ao levantamento dos recursos estilísticos mais expressivos, realçando essa sua expressividade.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. Várias são as funções atribuídas, neste poema, ao "padrão". Como marco sinalizador que é, ele surge com a função de assinalar a passagem de Diogo Cão ( "Eu, Diogo Cão, navegador..." - v. 2) pelo "areal moreno" ("... deixei // Este padrão ao pé do areal moreno" - vv. 2-3), dando, assim, conhecimento de que a parte da "obra ousada" que competia ao navegador cumprir foi feita. Na verdade,  em duas viagens, Diogo Cão percorreu a costa ocidental de África, entre 1482 e 1486, do Cabo de Santa Catarina até à Serra Parda, tendo levantado padrões de pedra (em vez de cruzes em madeira) nos vários locais onde aportava. Por isso, outra função do padrão era testemunhar, pelas "Quinas" gravadas no monumento, o domínio português das terras que iam sendo descobertas. Finalmente, podemos descortinar uma terceira função do padrão: manifestar, através da "Cruz" que encima o  próprio "padrão", a transcendência do objetivo último da navegação do "eu", mais concretamente, a demanda de Deus. Difundir a fé cristã pelos vários cantos do mundo era anunciado, com efeito, como a finalidade principal dos Descobrimentos. É claro que, no fundo, isso não passava de mera propaganda, dado que a primazia estaria mais voltada para os  interesses económicos, mas numa sociedade tão profundamente religiosa como era a da altura, convinha, naturalmente, acenar com a bandeira da difusão do cristianismo!...
 

 

2. Nota-se um paralelismo de construção dos versos 1 e 5, pois ambos seguem idêntico esquema lexical e sintático: determinante (artigo) — nome — verbo copulativo (no presente do indicativo, para dar mais autenticidade e atualidade às afirmações) —  adjetivo qualificativo — conjunção copulativa — determinante (artigo) — nome —  verbo copulativo — adjetivo qualificativo.  Essa estrutura frásica é formada por máximas ou frases aforísticas, assentes em antíteses, gerando relações de sentido entre os seus elementos que evidenciam, por um lado, a pequenez do "homem" e, consequentemente, a imperfeição da sua obra e, por outro lado, a grandiosidade da missão "divina" que lhe foi atribuída e que ele teria de tentar executar ("O esforço é grande e o homem é pequeno" - v. 1; " A alma é divina e a obra é imperfeita." - v. 5). Perante estas contradições, terá de ser feito um exercício enorme de autossuperação das limitações do "homem", tendo como fim último a  procura da perfeição "divina"  e o cumprimento da missão atribuída  por Deus a Diogo Cão, em particular (herói individual), e ao povo português, em geral  (herói coletivo).

 

Réplica do Padrão de Cape Cross ou Cabo Cruz, na Namíbia (cujo original se encontra em Berlim), e inscrição em inglês, de 1986, assinalando os 500 anos da viagem de Diogo Cão...


3. O campo lexical referente à navegação ("Diogo Cão", "navegador", "padrão", "areal", "naveguei", "vento", "céus", "oceano", "mar com fim", "mar sem fim", "navegar", "calma", "porto [...] por achar") assume uma grande importância no texto, quer pela quantidade e diversidade dos seus elementos, produzindo um discurso poético centrado no ato de navegar (tornando-se como que um hino da viagem marítima e de exaltação da descoberta), quer por configurar uma espécie de metáfora da demanda do transcendente.

 


 

4. A contraposição entre o "mar com fim", que é "grego ou romano"  e o "mar sem fim", que é "português", consubstancia um enaltecimento das viagens marítimas dos Portugueses, afirmando a sua superioridade relativamente às dos povos da Antiguidade Clássica. Estes últimos dominaram apenas o conhecido, o "mar com fim, o Mare Nostrum, enquanto os Portugueses se apropriaram do desconhecido, do "mar sem fim", que foram desvendando, acentuando-se, assim, a sua dimensão épico-heroica.
 

5. Como traços mais relevantes do auto-retrato do sujeito poético, podemos apontar: a  ânsia e a exaltação de navegar que o impelem invariavelmente "para diante", na busca do "porto sempre por achar"; o sentimento de insatisfação pela imperfeição da sua obra e, contrastivamente, o seu desejo de alcançar a perfeição; a tomada de consciência dos limites humanos, mas ao mesmo tempo o orgulho pela obra realizada, ainda que não totalmente perfeita (a perfeição não é própria do "homem"; a grande força de vontade e determinação, aliadas à capacidade de esforço, de auto-superação; a ida para "diante", por estar ciente de que a obra realizada / a realizar tem uma

dimensão transcendente e coletiva.

Nota-se, ainda, que ele nutre um sentimento de respeito e de fascínio pelo oceano, tal como se evidencia a sensação do dever cumprido - "Que, da obra ousada, é minha a parte feita:" (v. 7). Tudo o que ainda está "por-fazer", isso, segundo ele, depende exclusivamente de Deus - "O por-fazer é só com Deus." (v. 8).

 

6. Das diversas intencionalidades estilísticas que conferem literariedade a este texto da Mensagem podemos realçar, pela sua expressividade: as antíteses dos versos 1 e 2 ("O esforço é grande e o homem é pequeno" ; " A alma é divina e a obra é imperfeita.")que, como já acima foi explicitado, evidenciam quer a pequenez do "homem" e, concomitantemente, a imperfeição da sua obra quer a grandiosidade da missão "divina" que lhe foi atribuída e que ele terá de tentar levar a cabo, ultrapassando as suas limitações humanas; o transporte ou encavalgamento em "... deixei / este padrão ao pé do areal moreno / E para diante naveguei" - vv. 2-4), a sugerir não só a dificuldade da viagem (pela quebra rítmica) mas também o desembarque na costa africana seguido de uma partida imediata porque era urgente prosseguir com a façanha dos descobrimentos; a sinédoque  — "areal moreno" (v. 3) —, para  referir a costa africana ou um (in)determinado local do continente africano; a dupla adjetivação — "...imenso e possível oceano" - v. 9 — a enfatizar a ideia da coragem e da grandiosidade do feito dos

nossos marinheiros ao enfrentarem um oceano imenso mas cujo domínio estava ao seu alcance; a personificação das "Quinas" ("Ensinam estas Quinas..."- v. 10) que denunciam o poder educacional / instrutivo e o intuito evangelizador dos Portugueses (levarão a sua cultura, a sua língua e a sua religião a outros povos); o hipérbato — "E ao imenso e possível oceano / Ensinam estas Quinas, que aqui vês, / Que o mar...(vv.10-13 - a ordem correta das palavras na frase seria: "E estas Quinas, que aqui vês. ensinam ao imenso e possível areal que o mar ...") —, mais uma vez ao serviço da glorificação dos portugueses porque com a ordem das palavra invertida é dada prioridade ao "oceano" (colocado à cabeça) e ao "mar sem fim" (colocado na fim do verso e da estrofe) que será conquistado      pelos    argonautas

lusos; a oposição "mar com fim" / "mar sem fim", a aparecer também como forma de enaltecimento dos portugueses, cuja obra realizada (singradura dos mares desconhecidos) se revelou mais importante do que a dos gregos e romanos, que se limtaram a cruzar os mares conhecidos de então; a hipérbole "o mar sem fim é português", que vem acentuar o sentimento de posse do mar pelos navegadores lusitanos dos séculos XV e XVI, numa exaltação de todo um povo (herói coletivo), e de Diogo Cão, em particular (herói individual), cuja "febre" (= ânsia) de navegar, de desvendar novos horizontes, não tinha fim: "E faz a febre em mim de navegar / Só encontrará de Deus na eterna calma /O porto sempre por achar." (vv. 14-16).

 

Elaborado e publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

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Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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