O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu,
Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas
Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria
Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10.ª ed., 1972).
(1)
Padrão: marco de pedra com emblemas simbólicos, que
assinalava a posse de Portugal sobre as terras
descobertas. Era erguido pelos navegadores portugueses
nas terras que iam descobrindo, tendo como emblemas a
cruz e as quinas.
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas:
1.
Indique as funções atribuídas ao "padrão" neste poema.
2.
Explicite as relações de sentido que o primeiro e o
quinto versos estabelecem entre si.
3.
Analise a importância que os vocábulos e expressões
referentes à navegação assumem no texto. 4.
Comente o significado dos versos: "Que o mar com fim
será grego ou romano:/ O mar sem fim é português" (vv.
11-12).
5.
Descreva o retrato que o sujeito poético faz de si
mesmo.
6.
Proceda ao levantamento dos recursos estilísticos mais
expressivos, realçando essa sua expressividade.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
Várias são as funções atribuídas, neste poema, ao
"padrão". Como marco sinalizador que é, ele surge
com a função de assinalar a passagem de Diogo Cão ( "Eu,
Diogo Cão, navegador..." - v. 2) pelo "areal moreno"
("... deixei //
Este padrão ao pé do areal moreno" - vv. 2-3), dando, assim, conhecimento de que
a parte da "obra ousada" que competia ao navegador
cumprir foi feita. Na verdade, em duas viagens,
Diogo Cão percorreu a costa ocidental de África, entre
1482 e 1486, do Cabo de Santa Catarina até à Serra Parda,
tendo levantado padrões de pedra (em vez de cruzes em
madeira) nos vários locais onde aportava.
Por isso, outra função do padrão era testemunhar, pelas
"Quinas" gravadas no monumento, o domínio português das
terras que iam sendo descobertas. Finalmente, podemos
descortinar uma terceira função do padrão: manifestar, através da "Cruz" que encima o
próprio "padrão", a
transcendência do objetivo último da navegação do "eu",
mais concretamente, a demanda de Deus. Difundir a fé cristã pelos
vários cantos do mundo era anunciado, com efeito, como a
finalidade principal dos Descobrimentos. É claro que,
no fundo, isso não passava de mera propaganda, dado que
a primazia estaria mais voltada para os
interesses económicos, mas numa sociedade tão
profundamente religiosa como era a da altura, convinha,
naturalmente, acenar com a bandeira da difusão do
cristianismo!...
2.
Nota-se um paralelismo de construção dos versos 1 e 5,
pois ambos seguem idêntico esquema lexical e sintático:
determinante (artigo) — nome — verbo copulativo (no
presente do indicativo, para dar mais autenticidade e
atualidade às afirmações) — adjetivo qualificativo
— conjunção copulativa — determinante (artigo) — nome —
verbo copulativo — adjetivo qualificativo. Essa
estrutura frásica é formada por máximas ou frases
aforísticas, assentes em antíteses, gerando relações de
sentido entre os seus elementos que evidenciam, por um
lado, a pequenez do "homem" e, consequentemente, a
imperfeição da sua obra e, por outro lado, a
grandiosidade da missão "divina" que lhe foi atribuída e
que ele teria de tentar executar ("O esforço é grande e o homem é pequeno"
- v. 1; "
A alma é divina e a obra é imperfeita." - v. 5). Perante estas contradições,
terá de ser feito um exercício enorme de autossuperação
das limitações do "homem", tendo como fim último a
procura da perfeição "divina" e o cumprimento da
missão atribuída por Deus a Diogo Cão, em
particular (herói individual), e ao povo português, em
geral (herói coletivo).
Réplica do Padrão de Cape Cross ou Cabo Cruz, na Namíbia
(cujo original se
encontra em Berlim), e inscrição em inglês, de 1986,
assinalando os 500 anos da viagem de Diogo Cão...
3.
O campo lexical referente à navegação ("Diogo Cão", "navegador",
"padrão", "areal", "naveguei",
"vento", "céus", "oceano", "mar com fim", "mar sem fim",
"navegar", "calma", "porto [...] por achar")
assume uma grande importância no texto, quer pela quantidade e diversidade
dos seus elementos, produzindo um discurso poético
centrado no ato de navegar (tornando-se como que um hino da viagem
marítima e de exaltação da descoberta), quer por
configurar uma espécie de metáfora
da demanda do transcendente.
4.
A contraposição entre o "mar com fim", que é "grego ou romano"
e o
"mar sem fim", que é "português",
consubstancia um enaltecimento das viagens marítimas dos Portugueses,
afirmando a sua superioridade relativamente às dos povos
da Antiguidade Clássica. Estes últimos dominaram apenas o
conhecido, o "mar com fim, o Mare Nostrum,
enquanto os Portugueses se apropriaram do desconhecido, do "mar sem
fim", que foram desvendando, acentuando-se, assim, a sua
dimensão épico-heroica.
5.
Como traços mais relevantes do auto-retrato do sujeito
poético, podemos apontar: a ânsia e a exaltação de
navegar que o impelem invariavelmente "para diante", na busca do "porto sempre por
achar"; o sentimento de insatisfação pela
imperfeição da sua obra e, contrastivamente, o seu desejo de
alcançar a perfeição; a tomada de consciência dos limites humanos,
mas ao mesmo tempo o orgulho
pela obra realizada, ainda que não totalmente perfeita
(a perfeição não é própria do "homem"; a grande força de
vontade e determinação, aliadas à capacidade de esforço,
de auto-superação; a ida para "diante", por
estar ciente de que a obra realizada / a
realizar tem uma
dimensão transcendente e coletiva.
Nota-se, ainda, que ele nutre um sentimento de respeito e de fascínio pelo oceano,
tal como se evidencia a sensação do dever cumprido -
"Que, da obra ousada, é minha a parte feita:" (v. 7).
Tudo o que ainda está "por-fazer", isso, segundo ele,
depende exclusivamente de Deus - "O por-fazer é só com Deus."
(v. 8).
6.
Das diversas intencionalidades estilísticas que conferem
literariedade a este texto da Mensagem podemos
realçar, pela sua expressividade: as
antíteses
dos versos 1 e 2 ("O esforço é
grande
e o homem é
pequeno"
; " A alma é
divina
e a obra é
imperfeita.")que,
como já acima foi explicitado, evidenciam quer a
pequenez do "homem" e, concomitantemente, a imperfeição
da sua obra quer a grandiosidade da missão "divina" que
lhe foi atribuída e que ele terá de tentar levar a cabo,
ultrapassando as suas limitações humanas; o
transporte
ou
encavalgamento
em "...
deixei / este
padrão ao pé do areal moreno / E para diante naveguei" -
vv. 2-4), a sugerir não só a dificuldade da viagem (pela
quebra rítmica) mas também o desembarque na costa
africana seguido de uma partida imediata porque era
urgente prosseguir com a façanha dos descobrimentos; a
sinédoque
— "areal moreno" (v. 3) —, para referir a costa
africana ou um (in)determinado local do continente
africano; a
dupla adjetivação
— "...imenso
e possível
oceano" - v. 9 — a enfatizar a ideia da coragem e da
grandiosidade do feito dos
nossos marinheiros ao enfrentarem um oceano
imenso mas cujo domínio estava ao seu alcance; a
personificação
das "Quinas" ("Ensinam
estas Quinas..."-
v. 10) que denunciam o poder educacional /
instrutivo e o intuito evangelizador dos
Portugueses (levarão a sua cultura, a sua língua
e a sua religião a outros povos); o
hipérbato
— "E ao imenso e possível oceano / Ensinam estas
Quinas, que aqui vês, / Que o mar...(vv.10-13 -
a ordem correta das palavras na frase seria: "E
estas Quinas, que aqui vês. ensinam ao imenso e
possível areal que o mar ...") —, mais uma vez
ao serviço da glorificação dos portugueses
porque com a ordem das palavra invertida é dada
prioridade ao "oceano" (colocado à cabeça) e ao
"mar sem fim" (colocado na fim do verso e da
estrofe) que será conquistado pelos argonautas
lusos; a
oposição
"mar com fim" / "mar sem fim", a aparecer também
como forma de enaltecimento dos portugueses, cuja obra
realizada (singradura dos mares desconhecidos) se
revelou mais importante do que a dos gregos e romanos,
que se limtaram a cruzar os mares conhecidos de então; a
hipérbole
"o mar sem fim é português", que vem acentuar o
sentimento de posse do mar pelos navegadores lusitanos
dos séculos XV e XVI, numa exaltação de todo um povo
(herói coletivo), e de Diogo Cão, em particular (herói
individual), cuja "febre" (= ânsia) de navegar, de
desvendar novos horizontes, não tinha fim: "E faz a febre em mim de navegar
/
Só encontrará de Deus na eterna calma /O porto sempre por achar." (vv. 14-16).
Elaborado e
publicado
por
Joaquim Matias da Silva
Nota 1:
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estilísticos, abra
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Nota 2:
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