Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz
ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
(Fernando Pessoa, Poesias, Atena, n.º 3, 1921)
QUESTIONÁRIO:
1.
Indique três dos traços que caraterizam a figura
feminina, fundamentando a sua resposta em elementos do
texto.
2.
Refira dois efeitos do canto da «ceifeira» no sujeito
poético.
3.
Explicite o significado das exclamações no contexto das
três últimas estrofes.
4.
Identifique dois recursos estilísticos presentes no
poema, analisando o efeito expressivo de cada um deles.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
A figura feminina representada no poema é caraterizada,
entre outros, pelos seguintes traços: é uma «pobre ceifeira» (v. 1), isto é, uma humilde
trabalhadora do campo; talvez julgue ser feliz, pois «canta» (v. 1); anima o seu trabalho com o canto (v. 3); exprime-se, cantando com modulações de voz – som
ondulante (a sugerir a ondulação da própria campina e -
por que não? - as dificuldades da própria vida), cristalino, suave (vv. 3-8); tem um canto que reflete a natureza
(«o campo») e o
trabalho («a lida» - v. 10); parece ultrapassar a pequenez da sua vida pela força
do seu canto (vv. 11-12); canta espontaneamente,
sem pensar (v. 13); é insconsciente, a fazer fé
nas palavras do sujeito lírico («Ah, canta, canta sem razão!»);
desperta no eu da enunciação uma vontade indómita de ser
inconsciente como ela («
Ah, poder ser tu ... /
Ter a tua alegre inconsciência»),
ele que vive angustiado por causa da dor provocada pelo
pensamento!...
2.
O canto da «ceifeira» provoca no sujeito poético os
seguintes efeitos: vivência de sentimentos paradoxais de alegria e de
tristeza (v. 9); reflexão sobre as razões misteriosas que a movem (vv.
11-13); consciência da indissociabilidade do sentir e da
consciência do sentir, mesmo perante o canto «sem
razão» da figura feminina (vv. 13-14); desejo de sintonização perfeita com a «ceifeira»,
formulando o «eu» a vontade de que o seu
«coração» seja invadido por aquela «incerta voz
ondeando» (vv. 15-16); vontade de «ser», como já foi
dito na resposta anterior, como a «ceifeira», de ter a sua
«alegre inconsciência» (v. 18), sem perder nem a
identidade própria («Ah, poder ser tu, sendo eu!») nem o exercício da razão («E a
consciência disso!» – v. 19); uma eventual ânsia de
apagamento do eu (morte como forma de ultrapassar a sua
infelicidade? - «Entrai por mim dentro! Tornai
/
Minha alma a vossa sombra leve! /
Depois, levando-me, passai!); a emergência da dicotomia
Sentir/Pensar que perpassa por todo o universo poético
pessoano; constatação de que o pensamento provoca dor
(«... A ciência /
Pesa tanto...») e de que a a vida é efémera («... e a vida é tão breve!»)
3.
Querendo a inconsciência da ceifeira, estando
concomitantemente consciente dessa inconsciência, ou
seja, mostrando-se incapaz de prescindir do seu lugar de
lucidez e de «ciência» e sentindo a sua condição como um peso que
dramatiza a brevidade da vida («Ó campo! Ó canção! A ciência
/
Pesa tanto e a vida é tão breve!»), o «eu»
aspira a evadir-se do seu drama, apelando ao «céu», ao
«campo» e à «canção» – entidades simbólicas do
espírito, da natureza e da arte, respetivamente, e
balizadoras do ambiência em que se movimenta a ceifeira
(esse ser tão invejado!) – para que o libertem,
levando-o consigo, depois de o transformarem numa
sua «sombra leve» (v. 23) - sugestão de morte,
vista como a única possibilidade de fuga de uma vida que
não se deseja?
Vistas por este prisma, as exclamações tanto podem,
então, exprimir a intensidade do
desejo do eu lírico, a sua hiperconsciência («Ah, poder ser tu, sendo eu!
/
Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!),
sublinhando o aspecto
retórico de um apelo que não pode ser correspondido,
como sugerir a ideia de uma morte libertadora da "dor de
pensar" (veja-se o vocabulário sugestivo de um
apagamento do eu: «...Tornai
/
Minha alma», "sombra", «levando-me», «passai».
4.
Estão presentes no poema, entre outros, os seguintes
recursos estilísticos: a adjetivação – «pobre» (v. 1), «feliz» (v. 2),
«cheia», «alegre e anónima» (vv. 3-4), «limpo» (v. 6),
«suave» (v. 7), «incerta» (v. 16), «alegre» (v. 18),
«breve» (v. 21), «leve» (v. 23) –, ora descrevendo
(antiteticamente) a ceifeira e o seu canto, ora
sublinhando o drama íntimo do «eu»; a comparação («Ondula como um canto de ave / No ar
limpo como um limiar» – vv. 5-6), associando o canto da
ceifeira ao trinar modulado da «ave», que se estende
pelo «ar» límpido, como que acedendo à transposição para
outro espaço («limiar»); a antítese («Ouvi-la alegra e entristece» – v. 9), e
expressões antitéticas contrastantes («pobre ceifeira, /
Julgando-se feliz», «alegre e anónima viuvez» – vv.
1-4), «Pesa tanto» / […] / sombra leve» – vv. 21 e 23),
sublinhando a natureza contraditória tanto do canto da
ceifeira como da reação do «eu»; as expressões metafóricas (por exemplo: «Ondula», «E há curvas no
enredo suave / Do som», «Na sua voz há o campo
e a
lida», «Derrama no meu coração / A tua incerta voz
ondeando» – vv. 5, 7-8, 10 e 15-16), exprimindo o
movimento sinuoso do canto, que envolve o «coração» com
a sua extrema limpidez (e mimetizando a impressão visual
da seara ondulante que ela ceifa, podendo sugerir, de
igual modo, as dificuldades sinuosas e ondulantes
da vida); o paradoxo («O que em mim sente stá pensando», «Ah,
poder ser tu, sendo eu!», «Ter a tua alegre
inconsciência, / E a consciência disso!» – vv. 14, 17 e
18-19), evidenciando o caráter dilemático do sujeito
poético (experimentando simultaneamente o pensar e o
sentir, a inconsciência e a lucidez); a apóstrofe («Ó céu! / Ó campo! Ó canção» – vv.
19-20), numa invocação de entidades simbólicas que
envolvem a vida inconsciente e supostamente feliz da
ceifeira, exatamente as mesmas que, por inferência, estão ausentes da vida
consciente e infeliz do sujeto poético; a personificação do «céu», do «campo» e da «canção»
(«Entrai», «Tornai», «levando-me, passai» – vv. 22 e
24), revestidos de um poder sobre-humano (o de
resolverem o drama do «eu» e de lhe permitirem a
libertação).
Elaborado e
publicado por
Joaquim Matias da Silva
Nota 1:
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