Camilo Castelo Branco
Fernando Pessoa
José Saramago
Sttau Monteiro
Outros
Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

LIBERDADE

 

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O Sol doira
Sem literatura.


O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...


Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

 

(Fernando Pessoa, Cancioneiro, in Seara Nova, n.º 526, 11 de Setembro de 1937)

 

Análise / Leitura orientada

 

QUESTIONÁRIO:


1. Aponte contrastes presentes no poema que reflitam a oposição deveres(obrigação, artificialidade) e  naturalidade.

2. Caraterize o sujeito poético, tendo em conta o estado de espírito por si revelado ao longo da composição.
3. Explicite o sentido dos versos que constituem a quarta estrofe: «Quanto é melhor, quanto há bruma,/ Esperar por D. Sebastião,/ Quer venha ou não!» (vv. 17-19).
4. Comprove que a irregularidade formal está de acordo com o título e o conteúdo do poema.

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. De entre os vários contrastes presentes no poema que refletem a oposição deveres/ naturalidade podemos apontar:

 

DEVERES/OBRIGAÇÃO/ARTIFICIALIDADE

NATURALIDADE

Ler

Não cumprir um dever

Estudar

Não o fazer

Livros / literatura

O sol doira, flores, luar...

Finanças, biblioteca

Jesus Cristo, crianças

 

2. Inicialmente, o sujeito poético manifesta uma certa revolta contra o estereótipo, o convencional (“Ai que prazer / Não cumprir um dever”, “O sol doira / Sem literatura… edição original”, “Livros são papéis pintados com tinta”), a obrigação (“Ter um livro para ler / E não o fazer”), o dever (“Não cumprir um dever”, “Estudar é nada”), revolta essa que lhe provoca satisfação (“Ai que prazer”), levando-o a valorizar tudo o que é natural, espontâneo (“O sol doira / Sem literatura”) e a rejeitar a artificialidade: “O rio corre, bem ou mal, / Sem edição original”; “Estudar é uma coisa em que está indistinta / A distinção entre nada e coisa nenhuma”.

Depois, o eu lírico evidencia euforia, exaltação, entusiasmo, num estado de alma que é despertado pelo apreço a tudo o que se prende com as coisas naturais, simples: poesia, bondade, danças, crianças, flores, música, luar, sol…

No final do poema, deixa transparecer uma certa ironia, ao sobrepor Jesus Cristo a tudo o que é instituído, convencional: “O mais do que isto / É Jesus Cristo, / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca...”. Aliás, não é por acaso que Cristo é referido. Com efeito, Ele é frequentemente apresentado como exemplo de simplicidade, naturalidade, espontaneidade. E não é ainda por acaso que Ele aparece associado às crianças, também elas simples, verdadeiras, espontâneas - “Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas” (Mat. 19, 13-14) dizia Ele aos seus apóstolos quando estes as queriam impedir de se aproximarem.

 

3. A "bruma" é um nevoeiro espesso, pelo que, em termos figurados, representa a escuridão, a incerteza, mas também o mistério, o sonho, tudo o que está para além do visível e é alimentado pela imaginação, pelo mito. Daí a evocação de D. Sebastião, o Rei-Desejado, desaparecido em Alcácer-Quibir, mas que, segundo a crendice popular, iria aparecer numa manhã de nevoeiro, montado num cavalo branco, com a nobre missão de salvar Portugal, emergindo assim o mito sebastianista, que foi durante muitos anos o alimento da esperança na restaurção pátria, por parte de muitos portugueses que viram o país ser ocupado pelos castelhanos.

Então, ao afirmar «Quanto é melhor, quanto há bruma,/ Esperar por D. Sebastião,/ Quer venha ou não!», o sujeito poético quer dizer-nos que o sonho é que dá sentido à vida, independentemente da certeza ou não da concretização do ato sonhado/idealizado.

 

4. A irregularidade formal é bem notória ao longo de toda a composição poética. Com efeito, há irregularidade estrófica (o poema é constituído por estrofes de oito, cinco, três e quatro versos), irregularidade métrica (o metro ou medida dos versos é variado, indo das quatro sílabas - «Ai que prazer" - até às doze sílabas métricas -  «Estudar é uma coisa em que está indistinta»), variedade rimática (rima emparelhada - «...prazer / ...ler»; rima cruzada - «...original / ... matinal»; interpolada - «...seca / ... biblioteca»; masculina ou aguda - «...mal /... original»; feminina ou grave - «... nenhuma / ... bruma»; consoante, em todo o texto; rica ou antigramatical - «... isto /... Cristo»; pobre ou gramatical - «... peca /... seca», destacando-se ainda dois versos brancos ou soltos  -  «O Sol doira /
Sem literatura») e irregularidade rítmica (ritmo mais rápido e cadenciado, nas duas primeiras estrofes, e mais pausado e irregular, nas restantes estrofes. Ora, toda esta irregularidade
está em consonância com o título e o conteúdo do poema, pois reflete o inconformismo do sujeito poético face aos estereótipos, aos convencionalismos, e consubstancia a apologia que o eu lírico faz da LIBERDADE.

 

Elaborado e publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

Nota 1: se tiver dúvidas e quiser rever os recursos estilísticos, abra esta página.

Nota 2: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

 

 

 

 

====================================================

 

Talvez também tenha interesse em ver comentáros de poemas e estudos integrais de todas as obras e autores que fazem parte dos programas de Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao 12.º anos de escolaridade.

Consulte então os seguintes menus: Fernando Pessoa (poesia ortónima e heterónima), O Memorial do Convento (José Saramago), Felizmente Há Luar, Frei Luís de Sousa, Um Auto de Gil Vicente e Folhas Caídas (Almeida Garrett), Amor de Perdição (Camilo Castelo Branco), Antero de Quental, António Nobe, Sermão de Santo António aos Peixes (Pe. António Vieira), Bocage, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Os Maias e A Aia (Eça de Queirós), Eugénio de Andrade, Fernão Lopes, A Farsa de Inês Pereira (Gil Vicente), O Render dos Heróis (José Cardoso Pires), Camões lírico e Camões épico, Miguel Torga, Sophia Andresen, Aparição (Vergílio Ferreira), as Cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Consulte ainda as rubricas de Funcionamento da Língua.

Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

Voltar

  Início da página

 

© Joaquim Matias  2015

 

 

 

 Páginas visitadas