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NÃO SEI, AMA, ONDE ERA - Comentário

 

Análise de uma síntese perfeita

Maria Helena Nery Garcez (USP)

 

Do Cancioneiro de Fernando Pessoa ortónimo, destacam-se alguns poemas criados com admirável poder de síntese, que condensam complexos conteúdos em breves versos : Autopsicografia, Isto, Não sei, ama, onde era, Ela canta, pobre ceifeira e outros. É a magia da linguagem económica que é – ou pode ser – a poesia, o que aqui se pretende surpreender, usando de um discurso inverso ao dela, o analítico.

Na Autopsicografia, deparamos com a síntese de uma estética – não de uma poética em particular – tratada em três quartetos de redondilhas maiores, com rimas alternadas, funcionalmente distribuídas entre agudas e graves. No poema que, felizmente, os editores sempre tiveram o bom senso de publicar a seguir a Autopsicografia, o Isto, estamos diante da proposta de uma poética, a do Poeta que está por detrás de ortónimo e heterónimos, éditos e inéditos, também expressa em três estrofes breves, desta vez, em quintetos de versos hexassilábicos, rimados segundo o esquema ababb, habilidosamente distribuídos entre rimas graves e agudas. No presente texto, limitar-me-ei ao menos estudado poema Não sei, ama, onde era.


Não sei, ama, onde era                                            23-5-1916
Nunca o saberei...
Sei que era primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...)


Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Por que era tudo meu?
(Filha, quem o adivinha?)


E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)


Qualquer dia viria
Qualquer coisa a fazer
Toda aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...)


Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim e a dama
Que eu fui nessa solidão...


 

Segundo a edição de Maria Aliete Galhoz, o poema data de 23/5/1916; se a data é fidedigna, nem um mês após o suicídio de Sá-Carneiro.

Compõe-se de 5 estrofes, apresentando 4 estrofes de 5 versos ou quintilhas e 1 de 4 versos ou quarteto, a final. Versos breves, predominando o hexassílabo, com rimas regularmente alternadas nas 3 primeiras estrofes e na 5ª ou última, sendo que a 4ª estrofe se desvia do esquema, apresentando rimas alternadas nos 3 primeiros versos e emparelhadas nos 2 últimos. Se, na contagem das sílabas dos dois primeiros versos do poema, fizermos um hiato entre “ama” e “onde” e entre “nunca” e “o”, não ocorrerão, no poema, versos de 5 sílabas, que será composto apenas de hexassílabos nas 4 primeiras estrofes e, na última, de dois hexassílabos, um octossílabo e uma redondilha maior.

 

Constrói-se essa canção do Cancioneiro - sob a forma de um diálogo/confidência em surdina, entre um eu feminino e sua ama, cujas intervenções vêm, discretamente, em versos parentéticos, ocupando o último verso da estrofe, com excepção da 5ª, em que a ama não mais se manifesta. Também podemos entender que o discreto diálogo se dá apenas na intimidade do eu lírico, que interiormente conversa com uma espécie de ama/alter ego, a quem se abre e de quem gostaria de receber desejadas e impossíveis respostas.

 

Compondo a situação de confidência, pulsa, na canção, uma atmosfera medieval, que se, por um lado, poderia fazer pensar nas cantigas de amigo ou nos rimances, por
outro, tanto pela condição da dama que faz as confidências quanto pelo seu teor, ela distingue-se delas. Paira por sobre esse íntimo diálogo uma elevação e idealidade não
próprias daquelas composições mais cruas, terra a terra, narrativas ou fantasiosas. Mas, de qualquer forma, há, na canção, uma “coita de amor” de outra natureza - parafraseando Pessoa, diríamos “uma coita de amor de espécie complicada”- , numa forma breve, construída em versos breves, num brevíssimo e ténue diálogo, numa canção que quase soa despercebida, mas no qual, exemplarmente, se sintetiza a tragédia da condição humana.

 

Nessa “coita de amor” não buscada para “fazer uma partida ao Sá-Carneiro”, mas ao seu próprio criador e a cada um de nós, fala-se do desejo humano subjacente a todo e qualquer desejo, aquele que não admite adversativas, do desejo humano da felicidade plena, absoluta e eterna, sem a ressalva de que seria eterna enquanto durasse; fala-se do desejo humano da perfeição desprovida de tédio, não a pseudo-perfeição que a deusa Calypso proporcionava a Ulisses e que, por isso, não podia ser chamada perfeição.

Nesse diálogo entre a menos experiente e sua interlocutora que, a princípio, parece sê-lo mais – é a “ama” – há um contínuo vaivém entre um não saber e um saber, um vaivém  que formalmente se dá na disposição alternada das rimas e, nelas, ainda, na alternância de graves e agudas, com apenas uma excepção, a que, oportunamente, deveremos voltar.

 

Não sabe, a alma, a localização espacial aonde vivenciou o que conta à ama. O tempo verbal do 1º verso é o imperfeito do modo indicativo. Uma duração contínua num passado não definitivamente passado, imperfeito enquanto passado pois, caso contrário, seria perfeito; uma duração que, de algum modo, dura ainda. De uma coisa, contudo, a alma sabe com certeza absoluta: que nunca saberá o que deseja saber e não sabe. Aquele não saber espacial – que, na confidência, constitui o primeiro objecto/lamento de sua coita e a preside – não impede o saber temporal conclusivo e definitivo do “nunca o saberei”, daí a dor a perpassar os dois primeiros versos, dor concretizada e indefinidamente prolongada nas reticências, dor que, paulatinamente, vai impregnando todo o poema.

 

Ao que a alma sabe, acrescentam-se mais dados, sendo o primeiro o da estação do ano e de sua duração igualmente contínua: “Sei que era primavera”. De novo, expressa no imperfeito do indicativo, a duração da primavera, que não realiza o perficere de seu acabamento enquanto passado, mas é perfeita porque ainda dura, perfeição, contudo, espacialmente inalcançável. Sabe, depois, a alma, e estamos no verso quarto, que esse espaço, ilocalizável e sempre primaveril, era “o jardim do rei ...”. Note-se que tanto o 2.º quanto o 4.º versos são finalizados com a acentuação mais intensa das rimas agudas: “saberei” e “rei”, sendo que o primeiro termo inclui o segundo, reiterando-o, sonora e semanticamente, de algum modo. Na alternância de saber e não saber, as rimas graves, ou brandas, falam-nos do estado ininterrupto daquele espaço ignoto e da estação amena que nele durava em continuidade infinda: “era” / “primavera”. A essas rimas graves, que se prolongam com suavidade, opõem-se as agudas, terminantes, categóricas. Se a 1.ª das rimas agudas está no verso que radicalmente nega o desejo da alma, a 2.ª aparece no verso que o torna ainda mais desejável: o espaço, identificado como “jardim”, instaura, de per si, uma denotação positiva, ainda mais valiosa pela conotação originada por pertencer ao importante por antonomásia, o rei.

 

Intervém, no 5.º verso, a mais experiente ou confidente. Em poucas palavras, só demonstra mais saber do que a jovem porque, de raiz, corta com toda e qualquer esperança de ser possível saber o que ela deplora não saber. Em aparte àquela a quem chama de “filha” (os parênteses indicariam que a incisa interrompe, sem querer interromper, o discurso principal), ou em aparte a si mesma (outra possível funcionalidade dos parênteses), ou ainda em aparte aos potenciais receptores do poema, a ama universaliza o não saber de que se trata e, pelo uso do mais-que-perfeito com valor potencial, remete-o, definitivamente, para a esfera do que transcende a qualquer um de nós, à do absolutamente inalcançável. De novo branda, a rima, seguida das reticências, é desalento.

 

Como a intervenção da “ama” não interrompe o relato/lamento da “filha”, na 2.ª estrofe, esta prossegue as reminiscências, contando-lhe e a nós outra informação acerca desse inatingível e ignoto espaço: Que azul tão azul tinha/ ali o azul do céu! Seria possível caracterizar melhor o arquétipo do azul, a não ser pela tautologia? Aquele azul, para o qual de novo se usa o imperfeito do indicativo, não era uma qualidade, era substância, o próprio Azul subsistente e a repetição do termo, por três vezes em dois tão breves versos, em homologia com o espaço que a alma tenta descrever, saturam os versos de azul, presentificando-o e consubstanciando-o. Depois desse abismar-se da alma na reminiscência do Azul, irrompe a indagação, para a qual também se usa o imperfeito do indicativo do verbo ser, indagação formulada à maneira de hipótese que só admite uma resposta : Se eu não era a rainha,/ Por que era tudo meu? Além do espaço primavera eterna, além do jardim do rei, além do Azul substancial, a alma recorda-se agora de sua posição privilegiada, rainha e senhora de todo o circundante. Ela era a rainha numa continuidade passada e inacabada.

 

Não se vai configurando, verso a verso, estrofe a estrofe, indício a indício, a nostalgia da alma pelo mundo arquetípico, por um estar em intimidade com as Ideias, que pôde conhecer numa preexistência, talvez ? Ou, se passarmos da esfera platónica para a judeo-cristã, não se vai configurando ser, essa nostalgia-coita-de-amor, a do espaço edénico anterior à Queda, em que a alma estava “posta em sossego” na unidade com o Divino, em que os seres conviviam em harmonia cósmica ? A ama, por também não saber (e o seu não saber pode ser mais uma interpretação para suas intervenções virem entre parênteses), não ousa formular resposta, mas responde com outra pergunta, perenizando a perplexidade: (Filha, quem o adivinha?)

 

À reminiscência do jardim (1.ª estrofe) seguiu-se, na 2.ª, a do Azul e, na 3.ª, segue-se a das flores, em profusão de cores. Do Azul arquetípico, a alma parece saber, das flores, ela torna a se lamentar por não saber lembrar e a rima aguda potencia a angústia dessa incapacidade. Do mesmo modo, a agudez da rima do 4.º verso, potencia a intensidade do “chorar”, que, seguido de reticências, diz-nos de uma “coita” sem fim, à qual a intervenção da ama acrescenta um novo elemento: (Filha, os sonhos são dores...). Até  esse final da 3.ª estrofe, nenhuma das duas se havia referido a sonhos. De facto, o espaço dos sonhos é alcançável para quem já acordou? Tem, a alma, domínio sobre os sonhos? A intervenção da ama vem dizer à alma que o espaço do inconsciente escapa ao consciente e que belos sonhos, quando findos, são dores porque perdidos. A sua fala, ao subtrair-nos do espaço da transcendência, aflora outro, imanente, mas do mesmo modo inacessível.

 

Chegados à 4.ª estrofe, a narração prossegue, porém, não mais no imperfeito do indicativo e sim no futuro do pretérito, anunciando o que poderia ter sido, o que se vislumbrou, mas não foi. Salienta a alma, agora, em meio a um não saber que a impede
de nomear: Qualquer dia viria/ Qualquer coisa a fazer/ Toda aquela alegria/ Mais alegria nascer. É o clímax do relato, que se torna mais acelerado, mais dinâmico, quer pela anáfora dos dois primeiros versos, quer pelo uso de verbos no infinitivo, “fazer” e “nascer”, quer pela repetição do termo alegria. Chama a atenção que “aquela alegria” é de natureza especial pois, sob a acção de um inominado gerador, dela nascem alegrias
sempre novas e sempre outras. A estrofe diz-nos de um moto-contínuo próprio desse espaço, de um dinamismo feliz, perfeito, a que não está alheia a noção de paraíso, mas
desta feita, de uma ordem superior à terrestre. Se, curiosamente, as estrofes iniciais, podem ser interpretadas – já o dissemos – como reminiscência do Éden – paraíso terrestre – essa estrofe fala-nos do “dia qualquer”, ignoto também, que viria levar o terrestre ao celeste. Mais uma vez, porém, a ama, com seu realismo, freia o entusiasmo da alma, trazendo à baila o tema da morte.

 

Lembremos, neste momento, que é nesta 4.ª estrofe, que há a quebra do esquema
rítmico. Atentemos: o 1.º verso que termina pela palavra “viria” rima com o 3.º, que termina por “alegria”. Este, por sua vez, de acordo com o esquema, deveria rimar com alguma palavra em “ia”, que finalizasse o 5.º verso, o que não sucede. A “alegria” do 3.º verso rima com “alegria” no interior do 4.º verso, enquanto a rima final do 5.º verso, também aguda, é o “er” de “morrer”, que se emparelha e opõe ao “nascer”, do final do 4.º verso. Ou seja: a ama parece jogar água na fogueira do clímax de entusiasmo daquela que se abria em confidência. A sua voz de realismo, ou talvez de senso prático, alerta a jovem de que a hipótese de um moto-perpétuo de alegria não tem futuro e não pode vingar.

Chegada ao clímax, ao êxtase de seu sonho, “o resto é morrer...”.

 

A estrofe final, contudo, mostra-nos que a alma não desiste. Num quarteto, em que
já não mais comparece a intervenção sempre desalentadora da ama, a alma retoma o diálogo, não no sentido de prosseguir o relato de suas reminiscências – de sonhos ou de outra natureza – , mas num sentido de resistência ao conselho desesperançado da ama, numa descoberta de um modo de luta. Ao rogar-lhe que lhe conte contos, pede-lhe o mythos, o caminho para, através da linguagem que diz o inefável ou, segundo Pareyson, o inexaurível, ir ascendendo àquele espaço outro de que só guarda reminiscências e farrapos de sonhos. Entende-se, então, perfeitamente, que ela conclua o seu discurso na convicção de que a ficção, qualquer que ela seja, falará sempre desse dia, e jardim e a dama/ Que eu fui nessa solidão...

No único verso octossilábico da canção, verso que, portanto, se destaca, ela reafirma e resgata os elementos essenciais de seu desejo e nele se inclui.

Não é uma síntese perfeita da função sublimadora, sagrada, da arte?
 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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