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Fernando Pessoa

 

NÃO SEI SE É SONHO, SE REALIDADE

 

Pela voz de Bernardo Soares, um dos seus heterónimos, Fernando Pessoa afirma sobre si mesmo: “Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar”. E ainda: "Talvez porque eu pense de mais ou sonhe de mais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe”.

 

Na verdade, este grande mestre da Literatura Portuguesa, que se apresenta como o poeta da desilusão, do vazio, do nada, é aquele que está na margem, na linha de demarcação entre os planos do real e do imaginário, expectante e incapaz de dar o salto em frente. E para onde?... Com quem?... Porquê?... Talvez resida aqui o seu drama interior, que explicará a complexidade de uma vida vivida em vão (?), cheia de indefinições e de ânsias, que, de paradoxo em paradoxo, vão gerando novas indefinições e novas ânsias, mas sempre, sempre, em busca de um caminho. 

 

"Quem me dirá quem sou?" – é estaa pergunta angustiante que se dissemina ao longo de toda a sua obra ortónima e heterónima, constituindo-se como um leitmotiv para a luta titânica empreendida por si, numa tentativa de decifração do seu próprio ser em desagregação.

 

O poema “Não sei se é sonho, se realidade” revela-nos um sujeito poético que se caracteriza pelo (des)conhecimento do "eu" (“Não sei”...) e coloca-nos, desde logo, perante uma dicotomia muito frequente na obra pessoana: a irrealidade versus realidade, que o mesmo é dizer, o sonho versus vida: " Não sei se é sonho, se realidade,/ se uma mistura de sonho e vida". O conflito entre o apelo do sonho e a realidade actuante gera um estado de tensão íntima e sugere a problemática de um eu dividido que, numa tentativa de encontrar o caminho da unidade, começa por se entregar ao onirismo, vendo “Aquela terra de suavidade / Que na ilha extrema do sul se olvida". Essa terra não representa mais do que um lugar de salvação e nada melhor do que uma "ilha" para quem se sente naufragado nas águas que uma sociedade decadente (que não se compreende nem compreende) ou um "eu" pouco gregário tornaram revoltosas.

 

 

Esse lugar ideal tinha de apresentar qualidades e referentes espaciais que apontassem para a noção de paraíso perdido e, com efeito, essa terra de sonho caracteriza-se pela “suavidade” e pelo seu afastamento geográfico, sendo este último sugerido pelos adjectivos "extrema" e "longínquas", pelo nome "sul”, pela repetição do advérbio "ali" e pela forma verbal "se olvida" – só deixa de estar registado na memória o que não tem interesse e / ou o que se perde na voz do tempo! A ideia de distância é ainda sugestionada pelo exotismo próprio da ilha, que mais não é do que o reverso da vulgaridade. O ideal sonhado rompe, pois, com todos os estereótipos, fugindo do quotidiano degradável e degradante. Esse exotismo é denunciado pelo substantivo "palmares" e pela expressão "áleas longínquas sem poder ser".

 

As qualidades paradisíacas atrás enumeradas fazem com que “ali, ali” (a repetição adverbial aponta para um local distante, logo, impreciso) a vida fosse “jovem” e o amor sorrisse. Repare-se na positividade que é conferida à vida pelo adjectivo "jovem" e ao amor pela forma verbal "sorri". Como o sujeito poético (Fernando Pessoa?) gostaria de ver a vida com os olhos de um jovem, para quem tudo é expectativa e confiança indelével no futuro!... Como gostaria ele de ver o amor sorrir-lhe, dissipando todas as névoas que lhe turvam o espírito entediado!... Como ficaria feliz se os atalhos do seu sonho não fossem dar a clareiras de angústia!... Infelizmente, na segunda estrofe, ele começa a tomar consciência de que o ideal procurado não deixa de ser isso mesmo, um ideal, algo de indefinível e de inatingível: "palmares inexistentes", "áleas longínquas sem poder ser''. "Sombra ou sossego dêem aos crentes / De que essa terra se pode ter". Todos os atributos desse pseudoparaíso remetem-nos para o domínio do abstracto, do ilusório. Talvez não resida, então, nessa terra a cura para os seus males. Efectivamente, o advérbio de dúvida “talvez” que encabeça a segunda sextilha e que aparece reduplicado, e em lugar de destaque, no final do quinto verso, vem acentuar-nos o estado de incerteza que domina o sujeito poético, o qual recorre a uma frase interrogativa (“Felizes, nós?”) para nos introduzir num campo que resvala para o hipotético: talvez tenhamos sido felizes, sim, mas “Naquela terra, daquela vez” – as contracções "naquela" e "daquela" sugerem-nos um tempo e um espaço longínquos. Reminiscências neoplatónicas?... É possível que o nosso único momento de felicidade tenha sido usufruído numa vida pré-terrena (mito do paraíso perdido?). Pelo menos para o sujeito lírico parece não restarem dúvidas sobre isso.

 

A terceira estrofe é iniciada pela conjunção adversativa "mas", que vem marcar uma oposição, a nível ideológico, com o enunciado na estrofe anterior. É que, agora, a dúvida dá lugar à certeza: "Ah, nessa terra também, também! O mal não cessa, não dura o bem". Afinal, a “ilha extrema do sul” não é perfeita, porque ela mesma é geradora de conflitos: "mal” / “bem” –  note-se o valor expressivo   deste 

par  analítico,  em  que cada um dos elementos é puxado para um lugar de destaque na frase, respectivamente o princípio e o fim do verso. É com amargura, evidente no uso da interjeição "ah", que o sujeito poético reconhece a imperfeição dessa "terra". E como poderia ela ser perfeita se está desvirtuada por um pensamento que provoca dor, cansaço?!... Um ser imperfeito, limitado, não pode criar, nem sequer idealizar, a perfeição. Por isso, ”sob os palmares” sente-se o frio”, lexema de forte carga negativa e contraditória, como contraditório é o binómio sentir / pensar também aqui expresso.

 

Na posse (?) da “sua” certeza, o “eu” lírico atreve-se, de seguida, a tirar conclusões, assumindo corajosa e conscientemente as contingências que caracterizam a (sua) vida. Se quisermos curar uma alma que sangra, vítima das agruras de uma existência miserável e miseranda, se quisermos que o bem inunde em torrentes de tranquilidade o coração, teremos de procurar descobrir em nós mesmos as forças que nos hão-de catapultar para as benesses vindouras. Sonhar apenas “com ilhas do fim do mundo” não é condição suficiente de realização. Se queremos atingir a plenitude, teremos de acrescentar ao sonho os condimentos da esperança, da vontade e do esforço de busca. Só pode ascender a um plano superior aquele que for capaz de ultrapassar as suas próprias limitações. É que a imperfeição, mais do que no objecto, está no sujeito, na sua própria consciência, ela mesma geradora de mal-estar e de sofrimento.

 

Por isso, "é ali, ali", no nosso interior, na nossa alma, que está o lenitivo para os nossos males - Note-se que o advérbio localizador “ali” é precedido, agora, pelo presente do indicativo do verbo ser, que vem conferir uma maior definição, dando um sentido de presente e de realidade ao “ali” que ele não possuía na primeira estrofe. Sente-se a recuperação da esperança perdida, só que o ideal procurado torna-se, neste momento, possível, não no exterior, mas no interior do "eu". Pelo exposto, facilmente se pode dividir o poema em três partes lógicas.

 

Na primeira, constituída pelas duas primeiras sextilhas, o sujeito poético alimenta, ainda que ilusoriamente, uma certa esperança de salvação, a qual reside num espaço e num tempo indefinidos, idealizados. Na segunda, que engloba a terceira sextilha, iniciada pela conjunção coordenativa adversativa “mas”, nota-se já um desalento por parte do eu lírico, uma vez que ele acaba por constatar que, afinal, nesse espaço e nesse tempo idealizados também existe a imperfeição (“Sente-se o frio de haver luar/ (...) / O mal não cessa, não dura o bem.”), por consequência, não é ali que ele se pode encontrar. Na terceira parte, que compreende a última estrofe, é reiterada agora a certeza do sujeito poético – se quiser afastar os males que dilaceram a sua alma, terá de procurar em si mesmo o lenitivo que o há-de salvar e não andar a sonhar com espaços e tempos milagrosos. Corajosa e conscientemente, o sujeito poético acaba por assumir as contingências (incertezas) que caracterizam a sua vida, convicto de que nada é bom quando não nos sentimos bem.

 

A nível fónico, as constantes aliterações em /-s/ e em /-v/ transmitem ao poema um tom melodioso e suavizante, que está de acordo com a amenidade do local ambicionado, sugerindo também a ideia de distância e o desejo do "eu" poético em se deixar levar pela brisa reconfortante. O ritmo cadenciado e predominantemente binário ajuda a criar essa harmonia que perpassa por todo o texto. Aliás, este ritmo binário, assim como a dualidade rimática (rima emparelhada e cruzada: masculina e feminina; rica e pobre) e sonora (alternância de sons abertos e fechados, graves e agudos) e, ainda, o paralelismo e a reduplicação dos advérbios de lugar, de dúvida e de afirmação em lugares simétricos (sempre no quinto verso de cada estrofe), acabam por traduzir o estado de tensão e o entrelaçamento sistemático da realidade e do imaginário, sempre de mãos dadas, para desespero de um sujeito poético que se sente de igual modo dividido.

Comentário elaborado por

Joaquim Matias da Silva

 

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