Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se d`ua outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
que duns e doutros olhos derivadas,
s`acrescentaram em grande e largo rio;
Ela viu as palavras magoadas,
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
Notas:
V. 1 - leda (do latim laeta): alegre; V. 4
- celebrada: recordada, não esquecida; V.
5 - marchetada: enfeitada,
matizada; V. 7 - apartar-se: separar-se;
V. 8 - nunca poderá ver-se apartada: os
namorados, ainda que separados fisicamente, estariam
sempre unidos pelo amor; V. 13 - puderam:
poderiam; V. 13 - que puderam tornar o fogo frio:
as palavras de despedida dos namorados foram tão frias
que até o próprio fogo tornariam frio; V. 14 - e
dar descanso às almas condenadas: o sofrimento
veiculado por essas palavras era maior do que o dos
condenados ao inferno. Por isso, até as almas desses
condenados se sentiam aliviadas por verem outros sofrer
ainda mais do que elas (mal de muitos é conforto).
Este texto é constituído por duas quadras e dois
tercetos em metro decassilábico, com esquema rimático,
ABBA/ABBA/CDC/CDC, verificando-se a existência de rima
interpolada em A, emparelhada em B e interpolada em CD.
O soneto aborda a separação de dois sujeitos que
estiveram juntos e o sofrimento que essa separação
provocou, utilizando o termo anafórico “Ela”, que
substitui a palavra madrugada ao longo do poema,
referindo-a como única testemunha desse afastamento. O
sentimento predominante neste soneto é a tristeza.
A madrugada é personificada e testemunhou até ao fim a
separação dos amantes - “Ela só viu…” -, ocorrida no
momento em que o dia nascia, trazendo luz e beleza à
terra: “…quando amena e marcchetada / saía, dando ao
mundo claridade”. A esta beleza de uma madrugada
primaveril opõe-se o sofrimento dos amantes que se
separam e que surge apresentado em metáfora que se
transforma em hipérbole: “… as lágrimas em fio” que se
acrescentaram em “grande e largo rio”.
O soneto termina com a separação definitiva dos amantes,
que é acompanhada por palavra “magoadas” que
metaforicamente vão atenuar o fogo da paixão, tornando-o
frio, e proporcionando, de certa forma, alívio às almas
condenadas ao inferno do sofrimento.
QUESTIONÁRIO
Analise o texto segundo as seguintes linhas de leitura:
1. Assunto do poema (síntese da mensagem poética) e seu
desenvolvimento (estruturação das ideias).
2. Processos de linguagem e estilo de que o poeta se
serviu para exprimir os seus sentimentos.
3. Descrição da estrutura formal do poema e demonstração
de que se trata de uma forma poética adequada à
expressão de um sentimento único e estável: a dor da
separação.
RESPOSTAS
1. O sujeito poético afirma que nunca mais quer ver
esquecida aquela madrugada, pois foi ela a
única testemunha que assistiu à cena dramaticamente
dolorosa que o separou da sua namorada.
O texto poético pode ser dividido em três partes
lógicas. Na primeira parte (primeira quadra), o eu
lírico enuncia o desejo de nunca mais ver esquecida a madrugada
em que se deu a separação. A segunda parte, que engloba
a segunda estrofe, constitui a justificação do desejo expresso na
primeira parte: o poeta deseja recordar sempre essa
madrugada porque foi ela a única testemunha da
separação dos dois apaixonados. Na terceira parte, que
compreende os dois tercetos, há uma
concretização dos fenómenos presenciados: a separação
dos dois amantes, as lágrimas em fio, as palavras
magoadas. Verificamos assim, que há no poema uma
estruturação lógica das ideias: há um caminhar do mundo
interior para o mundo exterior, do mais geral para o
mais particular.
2. O sentimento fundamental que o eu da enunciação pretende
exprimir é a profunda tristeza da separação. O poema
abre logo com a antítese triste e leda madrugada. A
madrugada é objetivamente alegre porque é cheia de Iuz,
de cor, de movimento; é subjetivamente triste porque ela
própria sente (personificação) a dor dos namorados que
se separam. Note-se que o sentido do adjetivo triste é
continuado e caracterizado pela expressão "cheia toda de
mágoa e piedade", que aponta mais para uma tristeza
tranquila e resignada, sem deixar de ser profunda, o que
se compreende à luz de uma ética estoica, tão querida
dos clássicos. Da mesma forma, a alegria traduzida pelo
adjetivo leda é mais claramente objetivada pela oração
temporal "...quando amena e marchetada / Saía, dando ao mundo
claridade”.
Na relação estabelecida entre a tristeza dos amantes
separados e a alegria objetiva da natureza é evidente a
intenção da antítese: realçar a profunda tristeza da
separação. Mas quando o poeta vê a natureza também
triste, tornando-a solidária com a tristeza dos dois
amantes (personificação ou animização), a antítese
transferiu-se da oposição namorados tristes / natureza
alegre para a oposição natureza triste / natureza
alegre. A personificação da madrugada (natureza)
perpassa por todo a composição, em jeito de anáfora: "Ela só
viu...", “Ela só viu...", "Ela viu...". A intenção
expressiva desta reiteração consiste em realçar a ideia
de que a
natureza foi a única testemunha da tal separação. Na
verdade, só
ela assistiu, embora passivamente, a uma tão grande dor.
Com o fim de intensificar o profundo sofrimento da
separação, são ainda de realçar as hipérboles contidas
nas frases: "Ela só viu as lágrimas em fio” que, juntando-se,
formaram um "... grande e largo rio"; "Ela viu as palavras magoadas
/ Que puderam
tornar o fogo frio, / e dar descanso às almas
condenadas". De destacar ainda o paradoxo e/ou oxímoro "...tornar
o fogo frio", através do qual se enfatiza um sofrimento desumano, acima do que é
normal aguentar-se, maior do que o próprio sofrimento do
inferno.
Além do adjetivo
triste (em relação antitética com
leda - oxímoro), evidencia-se um vocabulário especialmente escolhido
para caraterizar a dor da separação: mágoa,
piedade,
lágrimas, palavras magoadas.
A forma verbal acrescentar ("se
acrescentaram em grande e largo rio") sugere não só a
persistência das lágrimas, mas também o aumento da sua
quantidade. Os tempos verbais sugerem que a saudade do
eu lírico é sentida no presente ("quero"), mas que se projeta no
futuro ("...que seja sempre celebrada, / Enquanto houver no
mundo saudade") e, como sempre, vem do passado ("Ela
viu as palavras magoadas..." ). Repare-se na aparente falta de lógica na afirmação “Ela viu
as palavras magoadas", facto que levou algumas edições a
optarem pela variante "Ela ouviu as palavras magoadas".
É verdade que as palavras não se veem, ouvem-se.
Pensa-se, no entanto, que foi intencional a escolha da
palavra viu porque "viu" sugere, no poema, não apenas o
ato de ouvir as palavras, mas também (e era isto que o
sujeito poético queria realçar) o
ato de observar os gestos, as atitudes, a fisionomia
triste dos namorados. Não é verdade que as palavras
ganham significado com os gestos e expressões do rosto
dos falantes?
Em conclusão, saliente-se ainda a grande diferença
estilística que há entre a primeira parte do poema (duas
quadras) e a segunda (dois tercetos). Na primeira parte
verifica-se uma grande simplicidade e sobriedade
clássica de processos, na expressão de um verdadeiro
realismo naturalista; na segunda parte, o arrojo das
hipérboles e dos paradoxos, para salientar a grande dor
da separação, dá ao texto um tom maneirista, próprio do
estilo engenhoso do século XVII.
3. O poema é um soneto, pois é constituído por duas
quadras e dois tercetos. Os versos são decassilábicos,
com os acentos rítmicos na sexta e na décima sílaba
(versos decassilábicos heroicos)
A
que
la
tris
te e
le
da
ma
dru
ga(da)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
É
esta a medida utilizada por Camões em todos os sonetos
e também n'Os Lusíadas (com a variante,
nesta epopeia, dos versos decassilábicos sáficos,
acentuados nas quarta, oitava e décima sílabas), a qual foi chamada, no seu tempo,
medida
nova, em oposição à
medida velha (redondilha maior e
menor ), também ela muito usada por
ele. Encontramos no soneto rima interpolada, emparelhada
e cruzada, o que se pode verificar no esquema rimático:
ABBA — ABBA — CDC — DCD.
Entretanto, o soneto é uma forma poética
adequada à expressão do sentimento que domina o texto
do princípio ao fim: a dor da separação. Com efeito, como se trata de
uma forma poética curta e sem margem para variações, não
há nela lugar para uma convulsão de múltiplos
sentimentos ou emoções; a própria dor da separação é
sintetizada, fundamentalmente, apenas com estas notas
caraterizantes: lágrimas em fio , palavras magoadas.
Por isso se diz que o soneto representa, na lírica, a ordem e a disciplina
mental do espirito clássico.
BORREGANA, António Afonso, Textos em análise
I, c/
adaptações.
1. A madrugada, só ela, assistiu à despedida saudosa de
dois corações enamorados, separação que nos faz recordar
a conhecida poesia de João Roiz de Castel-Branco
intitulada PARTINDO-SE e inserta no Cancioneiro Geral
de Garcia de Resende, no séc. xv:
« Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém...».
Estes são os seus primeiros versos. Mas muito antes,
logo no dealbar da nossa História Literária, a temática
da saudade serviu inúmeras vezes para caraterizar a
coita, isto é, o sofrimento de amor da donzelinha
enamorada. D. Sancho I, D. Duarte, Diogo Bernardes,
Francisco Manuel de Melo, Rodrigues Lobo, Almeida
Garrett, António Nobre e tantos outros, quer em verso
quer em prosa, haveriam de inspirar-se neste tema.
2. Divisão do soneto em duas partes lógicas: começa por
uma introdução, em que é manifestado um desejo
("quero"), para,
em seguida, na segunda parte, correspondente à segunda
quadra e aos dois tercetos, justificar esse mesmo desejo
e desenvolvê-lo através de três momentos marcados não só
pela divisão das estrofes, mas também pela repetição de
«ela só... ela só viu... ela viu».
3. A atribuição de sensibilidade à madrugada (animismo
impressionista) que funciona como personagem principal,
pois até surge no primeiro verso à cabeça do soneto,
provocando deste modo uma inversão violenta (quero que
aquela triste e leda madrugada, toda cheia de mágoa e de
piedade, seja sempre celebrada).
4. Esse mesmo animismo atribuído à madrugada é-lhe
emprestado quer pelas qualidades a ela apontadas (triste,
leda,
cheia toda de mágoa e de piedade,
amena,
marchetada),
quer pelas acções (saía, viu, [ou]viu), quer ainda pelo
papel de testemunha única que assistiu à separação -
este o sentimento fundamental do soneto - «de uma outra
vontade», viu «as lágrimas em fio» e a força das
«palavras magoadas» que «poderiam tornar o fogo frio», o
que nos faz recordar as albas ou serenas das antigas
cantigas trovadorescas.
5. Recursos estilísticos: o oxímoro logo no primeiro
verso:
triste,
por se tratar de uma separação, e
alegre,
porque a madrugada despertara assim, ou talvez por todas
as madrugadas serem alegres pelo facto de anunciarem um
novo dia; a hipérbole (v. 11); a antítese com
caraterísticas hiperbólicas e paradoxais nos dois
últimos versos; e a anástrofe na primeira quadra devido
à inversão violenta da ordem natural das palavras, já
referida no ponto 3.
6. A presença da diérese em saudade, no terceiro verso
(sa- u -da-de), talvez para traduzir a ideia de
distância que a palavra envolve, a qual, com o amor e a
tristeza, forma os sentimentos dominantes na composição.
7. Relacionação do segundo verso da primeira quadra com
o modificador
triste
(1.° v.) e a do primeiro e segundo da segunda quadra com
o modificador
leda
(1.° v.).
8. As duas únicas expressões que em toda a descrição
traduzem a dor da separação são «lágrimas
em fio»
(v. 9) e «palavras
magoadas»
(v. 12).
9. Jogo maneirista de vocábulos no 7.° e 8.° versos: "viu
apartar-se... ver-se apartada".
10. Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDC / DCD (rimas
interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos
tercetos).
BRAGANÇA, António
(1981). Textos e
comentários, c/
adaptações.